Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2013.
Há uma conhecida máxima de Ezra Pound que sintetiza uma intuição exposta com frequência ao longo da história da arte: “os artistas são as antenas da raça”. Com o perdão pela imperdoável busca por acompanhamento para algo que, como máxima, foi entregue ao mundo para seguir jornada desacompanhada, encontro companhia em um desdobramento de Marshall McLuhan: “A arte, como o radar, atua como se fosse um verdadeiro ‘sistema de alarme premonitório’, capacitando-nos a descobrir e enfrentar objetivos sociais e psíquicos com grande antecedência”. A criação artística teria uma capacidade premonitória justamente por manter sua sensibilidade aguçada às microvibrações do presente. Antenas como as dos insetos, não como as das televisões; sensores alertas aos pequenos tremores que anunciam os grandes terremotos, da mesma maneira que os animais, com os sentidos mais atentos e aguçados do que humanos dormentes em seu hábito de normalidade, são os primeiros a reagir a uma catástrofe natural ainda por eclodir. A arte seria o sismógrafo de uma experiência que não se expressa fisicamente, uma espécie de previsão do não-dito, no não-dito.
O cinema é uma arte vagarosa e a crítica de cinema é movida por lentidão ainda maior. Olhar para o cinema brasileiro recente em busca de antecipações ou vislumbres de toda a efetiva mudança de postura política (da Polis, não da Corte) que tomou a prática e o imaginário brasileiro nos últimos meses talvez seja um gesto de suma injustiça, e por isso são necessárias alguma cautela e o reconhecimento da insuficiência das necessárias generalizações. Mas, se falamos de uma mobilização política que tem raízes e desdobramentos fincados no Simbólico, há algo a ser dito sobre o não-visto, observações a serem feitas sobre o não-dito e sobre o problema deste mesmo não-dito: se olharmos para o bojo do cinema brasileiro recente, em especial aquele que se oferece como ponta de lança do porvir, essa mudança radical de postura que tomou e se tornou o cotidiano brasileiro em 2013 pareceria francamente impossível.
Em nosso contexto específico, trata-se de uma movimentação política que adentra o terreno da própria arte, que inclui o enfrentamento das forças políticas pré-estabelecidas (novamente, assunto da Polis, não da Corte) e a necessidade de se questionar todo e qualquer status quo, inclusive o das próprias palavras (“a new name for everything”, demandava uma já nem tão nova canção política). Hoje, nas ruas, não são apenas projetos de cidade que estão em choque, mas também regimes de linguagem e poderes da imagem. Questão de imaginário, questão de sentido. Independente dos desdobramentos práticos que podem vir nos próximos meses e anos, dos fatos que podem decorrer deste corte epistemológico, escrever crítica de cinema nos últimos meses impôs a convivência com a sensação de que vivemos, no presente imediato, o futuro que o cinema brasileiro falhou em prever.
Neste contexto, tomemos a superfície dos bons e dos maus filmes como a ponta de um iceberg que mantém a maior parte de seu corpo submerso, escondido sob a linha do oceano de uma imagem de Hofstadter, e desconfiemos da personalização das vontades e da suposta intenção que cada artista tem de controlar e medir as consequências de suas escolhas no mundo. Onde termina o diagnóstico e começa a repetição sistemática que transforma enganos em verdades históricas? Há camadas a serem desbravadas e desmembradas na tentativa de avaliar o papel do cinema brasileiro – e da crítica de cinema – em sua comunidade que não passam pela medicina social que visa simplesmente ampliar uma produção sem clareza de quais seus princípios e seus fins, e que independem da simples competência dos filmes em serem boas ou más obras estéticas. Le Corbusier pode ser, ao mesmo tempo, um mestre das linhas retas e o artíficie que orna a tábua no caixão das metrópoles modernas (diriam, com mesma eloquência, Tati e Antonioni). Sob a pele de imagens mais ou menos potentes, de planos e procedimentos articulados com maior ou menor competência, resta um olhar, uma visão de mundo e uma sensibilidade que, ao mesmo tempo, brota de um lugar muito específico e realimenta seu próprio húmus… que repete padrões e faz com que eles continuem sendo repetidos. Todo filme tem algo de espelho e algo de farol.
O perigo, no caso, é de tomar o cinema como sintoma e não como fato. O cinema não é a ferramenta ideal para se medir qualquer coisa além dele mesmo e usá-lo como índice ou ilustração de um certo estado de espírito do país é gesto que não se dá sem violência. Uma cinematografia é feita de obras de arte, e uma obra de arte, como bem afirmou Walter Benjamin, tem como suma função ser a melhor obra de arte que ela pode ser. A questão é que este “ser melhor” não exclui o contexto, mas depende dele. Ao mesmo tempo em que uma crítica de arte focada na leitura discursiva de uma obra sobre o mundo termina por ignorar sua intransitividade, uma outra crítica concentrada exclusivamente na poética (no sentido aristotélico do termo, e não no adjetivo barato no qual ele foi transformado) de construção das obras peca por inevitavelmente retirá-las de contexto – como se obras não fossem feitas por pessoas e para pessoas, e essas pessoas não carregassem sob as pálpebras os vícios e as potências de sua própria cultura. Excluir uma obra de arte de seu contexto é tão parcial quanto excluir o contexto de uma obra de arte, e este “ser melhor” benjaminiano assume justamente esta não-exclusão, a soma dessas duas parcialidades.
A avaliação crítica de uma obra de arte passa pela percepção de que “Mercúrio e Vulcano representam as duas funções vitais inseparáveis e complementares: Mercúrio a sintonia, ou seja, a participação no mundo que nos rodeia; Vulcano a focalização, ou seja, a concentração construtiva. (…) A concentração e craftmanship de Vulcano são as condições necessárias para se escrever as aventuras e metamorfoses de Mercúrio” (Italo Calvino, Seis Propostas para o Próximo Milênio). Restam, portanto, algumas perguntas ao cinema brasileiro recente e à crítica que o sucede: quais são as condições de Vulcano? E quais as aventuras de Mercúrio?
As aventuras de Mercúrio
Na primeira década dos anos 2000, institucionalizou-se, na crítica e no pensamento cinematográfico brasileiro, um discurso que fazia frente a uma tendência até certo ponto monotemática do cinema brasileiro, principalmente o de longa-metragem, em relação à violência. Em Julho de 2007, Ivana Bentes publicou na revista Alceu o artigo “Sertões e favelas no cinema brasileiro contemporâneo: estética e cosmética da fome”, que, em uma análise a partir de filmes como Cidade de Deus (2002), Baile Perfumado (1997), O Invasor (1996) e Como Nascem os Anjos (1996), definia a presença ostensiva (mesmo quando velada, como em Central do Brasil) da violência como o tema do momento. Guardadas todas as diferenças entre as obras que Ivana Bentes esmiuça em seu texto, filmes como Cidade de Deus e Ônibus 174 (também de 2002) marcavam a consagração pública do provável primeiro paradigma totalizante identificável na pós-Retomada, de uma “Pobreza e violência que conquistaram um lugar no mercado como temas de um presente urgente” (Bentes). Entre cineastas mais propositivos, pensadores e críticos, a sensação de que essa onipresença da violência reduzia o potencial simbólico do cinema brasileiro – a capacidade de pôr em cena, de maneira vigorosa, todo um país, e não apenas uma faceta muito específica dele – era impressão de quase consenso.
Como reação até certo ponto natural, uma nova geração que adentra a produção de filmes de longa-metragem no final daquela década buscou uma espécie de ruptura com esse suposto paradigma anterior. Essa ruptura não se dá sem antes passar por um momento de transição, com filmes (hoje bem pouco lembrados) que se colocavam na posição de “corretores de rumo”, como No Meu Lugar (2009), de Eduardo Valente, Conceição – Autor Bom é Autor Morto (2007), O Prisioneiro da Grade de Ferro (2003), de Paulo Sacramento, e Cabeça a Prêmio (2009), de Marco Ricca – filmes que não se desvencilhavam da temática talvez por inevitabilidade, mas que faziam o esforço claro e consciente de apontar outras abordagens possíveis do tema, tentando promover uma mudança de dentro para fora. De um extremo a outro, entre 2002 e 2012, o cinema brasileiro – salvo exceções de maior (Tropa de Elite) ou menor escala (O Fim da Picada, Mangue Negro e toda uma valiosa produção mais específica de cinema de gênero) que cumprem a necessária função de abalar as tentativas de regras –, em especial o cinema brasileiro mais jovem, se “higienizou” dessa impositiva onipresença.
A questão, porém, é que, com a reação, vieram também alguns efeitos colaterais de ordem estética e a criança foi jogada fora junto com a água da banheira. Ao “limpar” o cinema brasileiro das marcas de uma tirania temática da violência, o potencial de violência cognitiva e simbólica que é caro e essencial à própria experiência artística também foi atenuado. Assim como a encenação da violência não garante uma relação violenta com quem vê o filme, é possível confrontar a percepção artística do espectador filmando um ovo frito (como fez Abbas Kiarostami em seu episódio de Lumière et Compagnie) ou uma mulher a picar legumes (como fez Chantal Akerman em Jeanne Dielman). A violência é, sobretudo, uma atitude necessária a todo gesto criativo. Com o cinema que começa a despontar e se firmar nesta última virada de década aqui no Brasil, a necessidade de diálogo com a própria história recente do cinema brasileiro (um cinema reativo, não um cinema propositivo) e a vontade compreensível mas de efeitos não menos condenáveis de conquistar e se assentar em certo espaço social (operação que passa, ao meu ver erroneamente, por “não ofender” o espectador) terminou por neutralizar, quando não eliminar, de sua própria construção uma das mais básicas unidades de dramaturgia: o conflito.
Nesse sentido, a trajetória de Karim Aïnouz é bastante simbólica de um andante que foi se mostrando dominante no cinema brasileiro posterior, vindo de um filme que surgia como afirmação do dissenso – Madame Satã (2002) – não só tematicamente, mas também em seus procedimentos de construção fílmica, mas em seguida se aprofundando em um caminho cada vez mais seguro, com cortes que não arriscam rasgar os olhos do espectador, com dramas que não ameaçam a integridade dos personagens. Embora a influência de Aïnouz no cinema brasileiro contemporâneo me pareça menos efetiva do que uma vez antevisto, há desdobramentos desse mesmo desejo de produção de consenso auto-anestesiante na purificação final de Estrada para Ythaca (2009) (filme que, mesmo de maneira paródica, termina com a ascenção dos próprios diretores ao céu e o retorno santificado em roupas brancas e rostos limpos, idéia que se repete com o personagem que chega do mar, no belo Os Monstros (2010)); na enunciação ocultada de Um Lugar ao Sol (2009), de Gabriel Mascaro (algo que o diretor reverte, pela exacerbação, em seus filmes seguintes – justamente por estar tão ausente da filmagem, a montagem em Doméstica é uma verdadeira tomada de posição); na intelectualização distanciada do cinema de gênero nos primeiros filmes de Marco Dutra e Juliana Rojas (relação que já se mostra radicalmente transformada no essencial O Duplo, de Juliana) e em um curta como Os Mortos Vivos (2011), de Anita Rocha da Silveira; na obrigação protocolar de conciliação de A Memória que me Contam (2012), de Lucia Murat; na repetição tranquila de certa padronagem de inventário da arte contemporânea em filmes como Aboio (2005), de Marilia Rocha, Ex-Isto (2010), de Cao Guimarães, O Amor Segundo B. Schianberg (2009), de Beto Brant, e em filmes coletivos como Desassossego (2010) e Praia do Futuro (2008); no conto de fadas exploitation que é Do Começo ao Fim (2009), de Aluizio Abranches; na tranquila jornada picaresca de classes da protagonista de Eles Voltam (2012), de Marcelo Lordello; nos momentos de sublimação em simplicidade de Girimunho (2011), de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr; e mesmo no jogo de afirmação e desafirmação do filme essencialmente mais confrontador e instigante que é Os Residentes (2010), de Tiago Mata Machado. Essa percepção de um acerto de contas que já começa com uma margem de (des)vantagem, de um confronto “café-com-leite”, de uma aparente tentativa de suicídio que só é levada a cabo na certeza de que a rede de proteção amortecerá a queda parece chegar ao ápice em A Alegria (2010), filme de Felipe Bragança e Marina Meliande que, embora de fato encare a política com uma proposição ao presente, não o faz sem se esconder atrás de gigantescos escudos (e não de frágeis e improvisadas barricadas): não há forma mais efetiva de neutralizar qualquer risco de violência do que transformando as supostas vítimas em super-heróis.
A questão central é menos da justeza de cada posicionamento individual, e mais de o quão sintomática se revela a necessidade de calar a tirania de uma sensibilidade (o cinema de sertão e favela do texto de Ivana Bentes) com outra sensibilidade igualmente tirânica, e de como essa sensibilidade se mostra – como toda tirania, uma vez atropelada pela História – já velha e inefetiva. Se hoje se impõe a necessidade de se pensar um cinema “com violência”, ela não passa – Deus nos livre! – por uma demanda igualmente tirânica da volta dos tiroteios dourados de Fernando Meirelles como um paradigma para o futuro… ela é menos uma tentativa de substituir uma sensibilidade cansada e moribunda por outra que espera no banco de reservas do que a percepção de um alerta, do mundo para a arte, da necessidade de se resguardar a capacidade efetiva que um rito – e o cinema é o rito moderno por excelência – tem de preparar e de formar uma sensibilidade que ainda não se manifestou; de não se limitar a diagnosticar o concreto, mas de colocar o mundo que existe em confronto com um mundo que ainda precisa ser inventado – cena e montagem – e de que esse processo é necessariamente violento. De perceber que, para um mundo ser inventado, outro precisará ser destruído, e que a arte é justamente esse eterno canteiro de obras, esse terreno onde subir ou derrubar uma parede deve menos à finalidade de se manter um cômodo de pé, e mais ao prazer de se empilhar tijolos e de derrubá-los, novamente, a um só golpe.
As condições de Vulcano
Em um debate recente ocorrido com mediação de Francisco Bosco na Galeria Anita Schwartz, os artistas Nuno Ramos e Eduardo Climachauska colocaram em discussão a obra “O Globo da Morte de Tudo”, exposta ali até poucos dias antes. “O Globo da Morte de Tudo” consistia de uma sala quadrada com estantes em todas as paredes, divididas em quatro temas, e nessas estantes estavam expostos objetos coletados e organizados pelos artistas, relacionados com o tema de cada fração. No centro, havia um globo da morte, conectado às prateleiras por armações de metal. Em um dia específico, um (ou dois?) motoqueiro fazia o número do globo da morte que, pela vibração, sacudia as prateleiras e derrubava parte (qual? Como?) dos objetos expostos. A obra seguiu em exposição após sua “destruição”, incorporando, portanto, um antes e um depois. A destruição era seu próprio durante.
No debate, uma presente disse que, quando foi visitar a galeria, não teve coragem de entrar, porque sentiu medo. Nuno Ramos respondeu (e, se a memória estiver reprocessando e violentando sua fala, tanto melhor) que essa sensação de medo, de instabilidade, era algo que precisava ser resguardada à arte… de que havia ali algo de trem-fantasma, de um lugar onde é possível experimentar certa instabilidade, justamente porque é “de mentirinha”. Dessa experiência simbólica da violência, “de mentirinha”, é possível apreender algo de prático pra vivência contemporânea – reafirmando, na arte presencial, a função dos ritos.
Essa apreensão da violência na experiência artística que é perceptível na fala de Nuno Ramos ganha outros contornos no cinema, mas tem efeito parecido. Pois há uma outra camada de violência na relação de uma obra de arte com o mundo que se dá na própria experiência do espectador, e que não necessariamente se expressa em escolhas de ordem temática: os cortes bruscos dos brancos extremos para os negros mais profundos em O Nascimento do Amor (1993), de Philippe Garrel (ou de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla); a desorientação dos registros em abismo de um filme como Me and My Brother (1969), de Robert Frank (ou de A Lira do Delírio, de Walter Lima Jr.); a interrupção brusca que antecede toda transfiguração nos filmes de Apichatpong Weerasethakul; a queda das nuvens da protagonista de Falsa Loura (2007), de Carlos Reichenbach, ou de Menina de Ouro (2004), de Clint Eastwood; a chamada do espectador à responsabilidade em L’Apollonide (2011), de Bertrand Bonello; a reencenação com os algozes da história em S21: The Khmer Rouge Death Machine (2003), de Rithy Panh; a absoluta imprevisibilidade das ações (dos personagens e do próprio filme) em O Intruso (2004), de Claire Denis; a explosão de vida que irrompe cada plano nos filmes de Cassavetes… enfim, os diversos recursos artísticos que, coadunados à construção de determinados sentidos, fazem do cinema uma experiência instável e, justamente por isso, possivelmente transformadora. E que, vinte, trinta, quarenta anos depois permanecem como obras de ruptura. É um sentimento pelo qual o texto de Ivana Bentes apenas passava, ao recuperar a ideia de “Estética da Violência”, de Glauber Rocha – outro paradigma que o cinema brasileiro recente se esforçou por superar, mas que me parece cada vez mais urgente de ser recuperado e repensado -, de um cinema que buscava “uma carga de violência simbólica, que instaura o transe e a crise em todos os níveis” (Bentes).
O maior fracasso do cinema brasileiro recente em antecipar os “objetivos sociais e psíquicos” que hoje se apresentam está no esforço mais ou menos consciente de retirar da experiência artística esse caráter violento, essa instabilidade, essa ruptura que todo rito necessariamente carrega como ferramenta de sua própria efetividade e razão de sua existência. De fato, há exceções – e as exceções são a justa razão que motiva o exercício crítico, por mais que as generalizações por vezes se imponham como necessárias – mas, como tom geral (e se falamos em História, em Simbólico e em Política, é necessário falar do geral), a arte brasileira anulou ou banalizou o potencial de intervenção violenta necessário para que uma obra de arte se efetive enquanto tal. Sobraram os inventários sob luz fria das bienais de arte contemporânea e um cinema auto-congratulatório ou auto-mitificador de sua própria pureza, nos elogios ingênuos à infância e à simplicidade, ou a formas pervertidas dessa mesma e primeira idéia (a amizade, uma incompreensão do afeto, ou até mesmo esse sentimento de “panela-de-pressão” que nunca estoura – pois estoura, na vida real – presente em filmes tão distintos como O Som ao Redor e Os Inquilinos, de Sergio Bianchi).
Não há transformação possível sem destruição, sem violência, e o cinema brasileiro recente parece ter aberto mão desse potencial em nome de uma relação mais tranquila e estável com o espectador, mas também consigo mesmo. A requisição histórica de um “domínio de linguagem” ou de um “repertório de referências” (e, posteriormente, a demanda reativa, igualmente equivocada, por filmes “mais sujos”, “menos bem feitos”) foram apenas faces solicitadas pela crítica nos últimos anos que acobertavam um problema muito mais profundo, e do qual tudo isso era apenas sintoma, que diz respeito à função da própria arte e da relação – sempre complicada, no caso do cinema brasileiro – das obras com o espectador (não necessariamente este ou aquele, contável ou incontável; mas um, inteiro).
Na acomodação do processo histórico, porém, nada mais inútil do que a crítica que demanda procedimentos, imitações, e escreve manuais a serem seguidos (por quem? E para quê?). Um filme como man.road.river, de Marcellvs L., certamente teve um efeito violento nas pessoas que o assistiram em 2004; mas um filme como man.road.river, hoje, pode ter sentido radicalmente diferente (como teve em mim, quando o vi pela primeira vez, poucos anos atrás, já absolutamente confortável com tudo de supostamente “novo” que ele me trazia). A reconsagração do Cinema Marginal no final dos anos 1990 tinha um sentido determinado e já diferente daqueles manifestos no momento do gesto criativo, e hoje as inversões de polaridade promovidas pelos efeitos do tempo ficam escancaradas quando se vê um filme como Luz nas Trevas (2010), de Helena Ignez e Ícaro Martins. O que parece urgente neste momento histórico, e que se prostra como o elefante na sala que o cinema brasileiro é obrigado a perceber, não é questão de recorte, de procedimento, de tema ou de efeito, mas sim uma questão de postura. Em editorial da Cinética publicado em Agosto de 2012, escrevi: “Se, à crítica, parece valer a lembrança de que não basta esperar eternamente por um cinema que não existe, ao cinema brasileiro de hoje cabe a lembrança de que a arte talvez seja o lugar mais propício para a proposição de um outro mundo e a manifestação do não-contentamento com o mundo que já existe”. Hoje, é o presente que propõe ao cinema brasileiro um outro mundo.
Por outro lado, se o gesto crítico é violento por natureza, a única resposta justa a uma crítica que constantemente demanda ser surpreendida é a negação absoluta de qualquer surpresa.
Cinema como erupção de conflito
Dedicar atenção exclusiva ao pensamento dominante, porém, é falar a língua do inimigo. De fato, há filmes brasileiros recentes que, de maneira diferentes, esboçavam – mesmo que também de forma reativa, ou ao menos dialética – a consciência da necessidade da restauração (termo irônico, mas apropriado) da arte como território de conflito não somente temático – aquele que se esvai com o avançar da história – mas principalmente de natureza constitutiva às próprias obras. Se, por um lado, esse sentimento foi muitas vezes sensível na produção desgarrada de mestres em plena atividade (Coutinho, Bressane, Tonacci, Navarro, Salvá, Gaitán, Sarno etc), outras matizes de conflito estão igualmente presentes na problematização do antecampo em Doméstica (2012), de Gabriel Mascaro; na proposição política de Esse Amor que nos Consome (2012), de Allan Ribeiro; na auto-implosão, seja ela a autoral, nos filmes de Carlosmagno Rodrigues; a sentimental, de filmes como As Horas Vulgares (2011), de Rodrigo de Oliveira e Vitor Graize, e O Que se Move (2012), de Caetano Gotardo; a física, como na dança-luta de Charizard (2012 – foto), de Leonardo Mouramateus; ou a de linguagem, como em Cuauthemoc (2012), de Leo Pyrata; na invasão propositiva de A Cidade é uma Só?, de Adirley Queirós, e mesmo em diversos momentos de filmes anteriormente citados, como O Som ao Redor, Os Residentes e Girimunho – filmes de que, a rigor, gosto muito, e que guardam instâncias de conflito que vão muito além de seus diagnósticos. Há uma espécie de movimento pendular realizado pelos próprios filmes, oscilando entre a ruptura e a reconciliação, mas com a certeza de que a História – até mesmo para ser uma leitura vibrante e cheia de vida, e não um atestado de óbito de seu próprio passado – se escreve nas rupturas, e de que os autores (esse termo que parece mais reivindicado pela classe cinematográfica brasileira do que a de qualquer outro lugar do mundo) são justamente aqueles que inventam, sempre, uma nova escrita.
O que o presente coloca ao cinema brasileiro como questão fundamental não é a obrigação de correr atrás de uma História que disparou na frente (e não é sem certo temor que aguardo todos os filmes que reverberarão os acontecimentos dos últimos meses, gesto tão inevitável e necessário – e tão suscetível ao fracasso – quanto o que motiva este mesmo texto), mas sim a de, uma vez reassumidas as rédeas de um presente impulsionado por cavalos da criação que são, felizmente, indomáveis, como filmar os cascos em atrito com o chão de pedras? O chapéu que foge da cabeça a cada lufada de vento? O traseiro quicando no banco de madeira da diligência? Como filmar a pedra, a vidraça e os estilhaços?
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