Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2012.
Assalto à pureza
Chego em Tiradentes atrasado. Esse atraso é circunstancial, uma vez que dois dias de festival já se passaram, mas não só: este ano, Tiradentes está apresentando, em grande maioria, filmes que já foram vistos e que já motivaram outros textos na revista (e nesse sentido, o atraso foi infeliz porque alguns filmes de muito interesse e ainda inéditos nas páginas da Cinética foram exibidos neste começo, como Billi Pig, Djalioh e Hoje). Se a Cinética sempre teve como uma de suas mais potentes inclinações a possibilidade de se assumir revisionista; às revisões (mesmo que recentes) parece-me mais cabível assumir aqui um tom dialógico que, bem ou mal, é como estas reflexões começaram a se organizar desde que cheguei por aqui. A cobertura filme a filme já foi feita, na maioria dos casos, e de qualquer jeito é pouco orgânica da maneira como os filmes são experimentados num evento como Tiradentes.
Há algo, porém, que contribui com esse atraso e esse revisionismo. Como recentemente mencionado em um editorial, por questões pessoais passei a maior parte de 2011 sem ver filmes brasileiros. Pra quem há muito está imerso neste universo, essa breve distância traz à luz perspectivas um tanto inesperadas sobre o festival e os filmes aqui exibidos. Por vezes, estar atrasado é providencial. Em primeiro lugar, para quem responde ao seu tempo tentando estabelecer uma mínima impressão de História – mesmo que a abrangência necessária em um festival interessado na possibilidade do novo seja tão curta que talvez não mereça maiúsculas – é tentador chegar a filmes como As Hiper Mulheres e Girimunho embriagado por uma lógica teleológica, que os define antes mesmo que eles sejam vistos. A distância de “poder pensar o que já foi dito” traz não um esfriamento, mas por vezes uma possibilidade de deslocamento de eixo de olhar que, ao menos nesse primeiro dia, se faz urgente.
Esse deslocamento é importante, mas não tanto quanto os filmes: se As Hiper Mulheres e Girimunho solicitam abordagens diferentes, é porque são, de fato, filmes que se impõem em suas diferenças. No caso de As Hiper Mulheres, de Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro, o prazer proporcionado pelo filme tem algo de extremamente básico (uma vez que está na raiz primeira do cinema), mas em nada ingênuo: a maneira como a câmera se coloca e organiza os elementos no quadro, criando tramas de ritmos, cores, massas e movimentos que se reapresentam e se reconfiguram continuamente. Isso acontece tanto dentro da própria estrutura do filme – algo que parte do minimalismo narrativo (uma doença que gera um fiapo de drama) e termina na exuberância coreográfica – quanto dentro de cada cena, em uma constante reorganização espacial promovida pela câmera ou por quem é filmado.
As Hiper Mulheres tem, portanto, essa tensão essencial entre a cena e a câmera, nesse dilema expressivo de um filme sobre o universo indígena que se parece muito mais com um filme de gênero norte-americano. Essa suposta contradição é por si só desconcertante, mas mais ainda é o que resulta dela, com planos surpreendentes em sua mise en scène, alcançando beleza por vias insuspeitas. Se há graça em As Hiper Mulheres, ela não está na visão apaziguadora de que os índios, imagine!, são gente como a gente, nem exatamente em seu contrário (afinal, quem é gente exatamente como eu?); mas justamente na batalha constante que existe entre a mise en scène da própria ritualidade local e a que o filme imprime a partir de seus próprios dados. Embora exista uma simpatia natural em ver um filme que vai a uma aldeia indígena não para contemplar uma realidade supostamente distante ou para buscar o denominador comum que concilia a igualdade na diferença, o mais interessante é ver como as ferramentas de construção do próprio cinema potencializam o sentimento que já se coloca diante da câmera, harmonizando, pelo choque, quem filma e quem é filmado. É algo que fica claro na leve panorâmica que fecha o filme, passando a história de mãe para a filha com um recurso que o cinema há muito estabeleceu e que, aplicado com a devida justeza, não perde uma vírgula em expressão.
Em sua crítica a Girimunho, aqui na Cinética, Raul Arthuso pinça um trecho de um texto meu sobre uma sessão da Semana dos Realizadores em que foram exibidos Desassossego (2009) e O Mundo é Belo (2009). O texto original percebia ambos os filmes amarrados a um contexto determinado, respondendo a aspirações que os transformavam em algo como “resumos de época”. No papel, Girimunho talvez pareça a expressão máxima de um cinema pretendido por uma fatia de uma geração do cinema brasileiro – da qual a Teia é nome decisivo – que vinha sendo burilado por abordagens diferentes, mas que buscavam aquilo que Arthuso define como “plenitude da vida”, onde espaço e ser se amalgamam com a mesma volatilidade com que o diretor se dilui na própria cena. O problema é que Girimunho, filme onde nada é pleno, nada tem a ver com isso.
Há, portanto, um certo automatismo que tende a subjugar os filmes a seus contextos, assumindo tudo como um longo contínuo, e a reaplicar visões de alguma forma cristalizadas que pode fazer confundir a aparência com a coisa em si. Esse processo é percalço inevitável do próprio pensamento, mas justamente por isso é necessário tentar evitá-lo. De fato, há um caldo ideológico no qual o filme se insere que está presente em seu sentimento. Mas o cinema não é só ideologia, e Girimunho, esse tal “fim” para o qual as coisas supostamente caminhavam, se organiza e se apresenta (duas coisas que dizem muito mais respeito à arte do que a ideologia) de forma absolutamente diversa do que compõe essa tal trajetória.
Ao apresentar o filme na Mostra de Tiradentes, o diretor Helvécio Marins solicitou aos espectadores que deixassem de lado os conceitos e os preconceitos para tentarem acompanhar uma história. Não deixa de ser irônico, porém, que, apesar da utopia de pureza que marca não só esta fala, mas uma posição comum no cinema brasileiro atual em relação ao mundo e à arte, Girimunho seja um filme interessante justamente pelo que há de deliberado e opaco em sua construção. Em dado momento, a câmera filma uma estrada através do vidro de um automóvel. Mas mais do que mostrar a estrada, ela se concentra no vidro sujo que está diante da câmera, manchado pela passagem do tempo e pela poeira acumulada. A sujeira, como os conceitos e os preconceitos, são parte do mundo, e o filme, felizmente e à revelia da fala do diretor, se alimenta delas.
Afinal, Girimunho é um filme de drama. Não é um filme do valor da experiência bruta, mas justamente da experiência produzida. Se as personagens interpretam a si mesmas, se há uma indefinição de o quanto o roteiro é solicitado pela realidade, se os espaços visitados já não nos parecem “novos”, se a abordagem dos planos gerais e estáticos e dos reflexos e desfoques não rompe com um suposto estado de aparência vigente, nada disso resume ou dá conta do filme. Os métodos e procedimentos determinam resultados, mas não são os resultados. Girimunho tem virtudes e problemas que lhes são particulares e que, por isso mesmo, são tão mais interessantes do que essa visão do filme como uma mera peça em uma enorme engrenagem faz crer.
Uma das cenas mais fortes de certa forma ilustra o que é a experiência de assisti-lo. Bastu, a senhora que protagoniza o filme, entra em uma canoa e, iluminada pelo resto de brilho dos fogos de artifício, rema para a escuridão. Quando a tela já está tomada pelo céu negro, e a personagem já foi engolida pelo fundo do quadro, uma música toma a banda sonora, enquanto um barco luminoso adentra o plano, ressignificando uma cena que já parecia, para todos os efeitos, acabada. A experiência de Girimunho é um pouco como isso: o filme demanda a disposição de repensar o que já parecia compreendido antes da inserção deliberada, nada natural, de um novo dado visual ou sonoro que muda o sentido do todo. O som determina os limites – o dentro e o fora de quadro, mas também o natural e o sobrenatural – em uma escoamento livre e constante entre as camadas ali conviventes, como a aparição de uma nova cena obriga a repensar a anterior, gerando um encadeamento que, para avançar, precisa sempre recuar. Nada mais apropriado para um filme que, justamente, sobrevive da convivência entre vivos e mortos, entre passado e presente, como o ser desencarnado que segue trabalhando em sua oficina.
Tudo isso, portanto, é questão de manipulação, não de mero registro. É expressivo também que a cena mais fraca do filme, e a que melhor expressa seus limites, é de caráter explicativo: avó e neto conversam enquanto caminham pela cidade, trazendo para o proscênio questões que eram tão mais interessantes quando misteriosamente (mas não cripticamente) indicadas – um óculos escuro, o barulho de ferramentas trabalhando, um belo revólver. Não é à toa que o drama do barulho das ferramentas pouco depois será melhor resolvido, pois não justificado, quando Bastu recolhe as ferramentas do falecido marido e conversa com a memória do morto. Os problemas que fazem de Girimunho um filme imperfeito são, portanto, de ordem dramatúrgica, quando recorre a soluções simplórias e apressadas que destoam em um amarrado bastante complexo. As imperfeições de Girimunho não são de projeto, mas de realização, o que já coloca em um lugar absolutamente distante desse tal “espírito de geração”, ou mesmo da produção pregressa da Teia e dos próprios realizadores. Imperfeições à parte, Girimunho é, sobretudo, dissonante. E, deixando a história e a geração de lado, é um filme que consegue se manter vivo e surpreendente a maior parte do tempo, mesmo quando sua aparência mais epidérmica faz crer o contrário.