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The Vulgar Hours (As Horas Vulgares, 2011), Rodrigo de Oliveira & Vitor Graize

Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2012.

Plano de conjunto

A primeira pessoa dos textos desta cobertura não é um hábito, tampouco um esforço de estilo. Ela é a tentativa de expressar uma necessidade. No caso de As Horas Vulgares, esse aspecto revisionista, mencionado no primeiro texto, ganha um outro sentido: afinal, ao lado de Strovengah (2011), de André Sampaio, As Horas Vulgares é um dos filmes a que eu já havia assistido. Ou quase, uma vez que, desde meu contato preliminar com o filme em DVD, ele ganhou toda uma edição de som e perdeu alguns planos. Perdeu também, como em quase toda revisão, muito do estranhamento diante de seus limites, intenções e incômodos (parte deles muito bem registrada na crítica de Juliano Gomes, aqui na Cinética), a tal palavra que vai e volta aqui pela Mostra, tentando dar conta do inexplicável.

Mas, sobretudo, As Horas Vulgares ganhou o cinema. O cinema, primeiramente, como espaço físico de exibição:As Horas Vulgares depende de maneira vital da escuridão da sala, da luminosidade da projeção, da possibilidade de concentração e atenção cuidadosamente aprimorada ao longo dos anos para permitir o máximo de concentração. Mesmo com ela, é sempre possível que a experiência se quebre antes de acontecer. É um filme, afinal, feito em película – mesmo que exibido em digital – e que usa os grãos do 16mm preto e branco como um dado tão importante quanto os atores em cena. As Horas Vulgares é um filme de cinema e pro cinema, e ali, naquele espaço, o filme propõe ao espectador um pacto que, como o firmado pelos personagens no silêncio da convivência, demanda um sacrifício. Para que o filme aconteça, é preciso estar disposto a sucumbir sob seu peso.

Por cinema, também, penso o fato de As Horas Vulgares ser um filme de mise en scène como poucos visto no cinema brasileiro recente. Esse dado talvez já tenha sido carimbo qualificativo para a crítica, em especial a partir de Jacques Rivette, mas hoje, no cinema brasileiro, a mise en scène parece ser menos uma necessidade, e mais um traço de estilo. Construir planos onde a posição de cada elemento no quadro é determinante para a compreensão do filme – mais até do que o que eles falam; mais do que como eles agem e o que fazem – é algo muito mais raro no cinema brasileiro (mas não só) contemporâneo do que os críticos e cinéfilos tradicionalistas gostariam de admitir. Essa clareza de trabalhar e se expressar pelo plano, em nome e em busca do plano, não é, porém, uma fuga anódina por um atalho formalista. O plano, em As Horas Vulgares, é uma unidade de dureza impressionante, mas que, ao mesmo tempo em que dá conta de tudo e suga toda a energia das personagens, aponta sempre para a fora. As Horas Vulgares é um filme de closes em busca do plano de conjunto.

Em dado momento do filme, um plano estranho nos tira do penoso transe que o filme constrói de forma pregnante e igualmente repulsiva (pois trata-se de um filme que dispensa nossa empatia pelas personagens; importa mesmo é que sintamos o seu peso). É um plano do grupo de amigos reunido em um quiosque na areia (da praia? As Horas Vulgares não pode enxergar ou mostrar o mar), fazendo um brinde. Ele salta aos olhos não por sua composição – caso raro no filme em que os elementos parecem atrapalhadamente jogados no centro do quadro, como se a reunião de todas aquelas pessoas jogasse contra os planos (com duplo sentido) do próprio filme – mas por vir completamente sem som. Em um filme tão insistentemente falado, declamado até, o silêncio (e, em última instância, a morte – uma morte, um sacrifício) é ao que todos ali aspiram. Ao longo de As Horas Vulgares, os planos de conjunto parecerão poucos, marcando breves ínterins de encontro (mas não exatamente de harmonia, de parceria) entre aqueles rostos luminosos isolados em closes sobre fundo negro.

Mas por cinema, enfim, refiro-me ao todo de uma produção de filmes e ao redor dos filmes – todo do qual As Horas Vulgares é apenas uma pequeníssima parte, mas no qual o filme se insere com clareza e consciência, mesmo que compartimentado em um nicho específico. Pois ele não se furta a contemplar e comentar essa relação com alguns novos dados, sem com isso se tornar um filme de resposta, um filme de crítico (uma vez que Rodrigo de Oliveira, que dirige o filme com Vitor Graize, se apresentou antes do filme como crítico, sobretudo, “antes mesmo de ser pessoa”). Se, por um lado, temos aqui também uma tendência ao gueto, ao círculo fechado de amigos que se amam e precisam uns dos outros, recurso que se tornou bastante presente no cinema brasileiro dos últimos anos (Os Residentes, A Alegria, Estrada para Ythaca, Os Monstros), em As Horas Vulgares há uma consciência, ou mais propriamente um olhar crítico, dos limites desse grupo. O grupo será sempre confrontado à inevitabilidade da cidade, de um mundo que urge silenciosamente fora do plano e que cinde o próprio grupo. O grupo é também um close aspirando ao plano de conjunto, de reintegração com a própria cidade.

Em uma experiência como a da Mostra de Tiradentes, filmes se misturam a conversas, se explicando e comentando mutuamente. No segundo seminário Panorama Crítico da Crítica, o próprio Rodrigo de Oliveira comentava da inevitabilidade do Novíssimo Cinema Brasileiro (tão inevitável em sua fala quanto Vitória é no filme), e sobre um espírito de grupo geracional que conecta filmes díspares. As Horas Vulgares parece, por meio dessa relação entre o rosto e o conjunto, estender uma vontade de conversa com esse grupo, mas reconhece sua impossibilidade de adequação, de adesão a ele, sem que um sacrifício – a morte de um indivíduo, de fato, mesmo se não carnal – seja necessário. As Horas Vulgares busca fazer a distinção, talvez impossível, entre o espírito de grupo e o espírito de bando, tendo aí, no sacrifício do sujeito, a passagem de um (o grupo) para o outro (o bando). Por essa distinção, o filme se sacrifica em praça pública, como o mortal tomado por messias – que sabe, porém, que não há redenção ou ascensão possível nesse sacrifício. Há apenas a necessidade de morte, de se queimar como filme, de preto e branco e figurino demodé, levando consigo os planos (com duplo sentido) que, sem ter pra onde ir, pesavam sobre a tela. As Horas Vulgares é um filme tão mais interessante quanto seu deslocamento em relação ao todo – deslocamento que não é buscado, mas reconhecido – o permite ser.

Em dado momento, Lauro (João Gabriel Vasconcellos) faz uma profecia (afinal, é aquele que o grupo reconhece como Jesus, como messias), da qual hoje me parece difícil nos desvencilharmos: “existem meios para a fuga, mas será que existem lugares para onde se possa fugir?” Vitória, essa ilha, essa mesa de bar cercada de areia por todos os lados, é a promessa de expansão sem possibilidade de fuga: se ali, praqueles rostos, ela é todo, para o resto (o Brasil, o mundo, o cinema), ela é apenas uma pequeníssima parte, não mais que um rosto perdido em closes sobre fundo negro. O que sobra é um cansaço profundo, mas que encontra, ali no pacto de amor forçado que a personagem de Raphael Sil oferece (também em sacrifício – no caso, o de sua namorada) a Lauro, um momento de força digno de antologia. Ao final daquele doloroso ritual, a montagem corta para o plano geral e inclui Fra, personagem que assistia a toda a cena sem que suspeitássemos, vivendo momento de choque e incompreensão com aquele ritual; momento que é só dele, ao qual o filme e os espectadores não têm acesso.

O movimento do close para o plano de conjunto talvez seja exatamente esse: reconhecer que, fora da cena e do filme, há alguém que olha. E mais do que a compreensão do ritual, há o impacto da crença de quem se envolve em sua latente gratuidade, e se entrega a ele sabendo que ele não só lhe custará a vida, mas que também não a merece. As Horas Vulgares capta essa paralisia, esse cansaço e essa imobilidade, distante das festividades meta-linguísticas, do elogio do movimento e da jornada, de uma vontade de fluxo no cinema quando ele não está sequer esboçado na vida, que vai de esquina a outra sem conseguir realmente sair do lugar. O cinema brasileiro talvez nunca tenha tido para onde ir, mas ele encontra uma dor e uma gravidade necessárias quando reconhece que precisa ficar.

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