Originally published in Semana dos Realizadores: Vôos do Cinema Brasileiro Contemporâneo, edited by Patrícia Froes (São Paulo; Rio de Janeiro, Brazil: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012) 114-5.
Realizations
It must be by sheer coincidence, but even the most rationalist ones might look back and struggle to map the paths of chance with at least a small dose of mysticism – even when it comes disguised as scientific diagnosis. It has got to be a coincidence, so mysticism aside, let’s focus on this radical confluence which stands as evidence: among all the festivals and events committed to contemporary Brazilian cinema, Semana dos Realizadores has been the one to emphasize a relatively new but broadly spread phenomena in Brazil’s current film scene: the embrace of artistic creation as a theme.
By that, I am not simply referring to the recurrent and often tangential trend of incorporating the process into films themselves – a distinctive indicator that has often enthused the academy over the last few years. The issue here precedes this trend and should be taken more literally: after two decades of “paying its dues” for the relevance of a subject-based cinema – whether it was through the reaffirmation of a pact of engagement, as with the Cinema Novo and the “Retomada”, or by its denial, as in the “Boca do Lixo” (underground) productions – a vibrant and signficant share of Brazilian filmmaking seems to have finally achieved a clear-enough marginalized position that allows it to seek out in poetry – an unavoidably marginal art, at least in a country like Brazil – the unrestricted desire for eviscerating theme altogether. In this embrace of apparent social irrelevancy, artistic creation started stabilizing as its own subject matter.
This is perhaps the most frequent pattern presented in the first four years of Semana dos Realizadores – a pattern not nearly as visible in other relatively consonant festivals such as Mostra de Tiradentes or Cine Esquema Novo. It is a common trace that connects films that are formally far apart, ranging from the most conservative pieces to those that appear suicidal in their radical approaches. This self-reflective yearning is more evident in a significant slice of the productions – The Residents (2010), Strovengah (2011), The Last Novel of Balzac (2010), Sandro’s House (2009), The Ecape of the Monkey Woman (2009), Chantal Akerman, from Here (2010), Afternoon Woman (2010), Runaway Slave (2009), The Monsters (2011), The Hyperwomen (2011), Steps Into Silence (2008), Witness 4 (2011), Sagrado Segredo (2008), This Love that Consumes (2012), Cuauhtémoc (2012), It All Seems like a Dream (2009) – and permeates many others – Pacific (2009), Housemaids (2012), Avenida Brasilia Formosa (2010), Laura (2010), The Sky Above Us (2010), Road to Ythaca (2010) – at a moment when Brazilian cinema is taken over from the margins (edges that may not acknowledge a center … that perhaps have no center) by a group of filmmakers (not merely directors – “film-making” is taken here in its broadest possible context) who care as much about making films and about reflecting on the creative process. In this specific timeframe, cinema is (re)born surrounded by intelectual production – whether it is critical, academic, downright spontaneous – with which it inevitably interacts, and of which Semana dos Realizadores is an integral part, with their debate cycles that extend the lives of the films, and with essays like this one.
A quick glance at this production may give the impression of a necessity for manifestos, for the ratification of a cinematic project more that spends more energy addressing itself than realizing it – a project that can be stretched over two or three films, like a long prologue of a story whose true beginning is constantly postponed. That’s not a simple argument to refute. But the issue here has deeper roots: in a reality numbed by mass-produced images, by the focal disengagement of seemingly “self-produced” imagery in journalism and advertising (two forces that influence and contaminate Brazilian cinema), there remains an artistic gesture in this very search, in this recognition that, in a world with cameras pointed at every direction in every second, the ontological investigation of the artistic impulse perhaps offers the possibility of a difference, of images that do not null themselves. These are films in which reflection is concomitant with construction. In the most successful cases, watching them is like partaking in the experience of making them.
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Publicado originalmente em Semana dos Realizadores: Vôos do Cinema Brasileiro Contemporâneo, editado por Patrícia Froes (São Paulo; Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2012) 114-5.
Das realizações
Há de ser apenas coincidência, mas mesmo os olhos mais racionalistas têm dificuldade em se voltar para trás sem enxergar nas articulações consumadas do acaso uma ponta que seja de misticismo – nem que venha travestido como ciência que diagnostica sintomas. Só pode ser coincidência, mas deixemos as crenças para que o leitor as articule, e fiquemos apenas na confluência radical que se impõe como evidência: de todos os festivais e mostras dedicados a olhar para o cinema brasileiro contemporâneo, foi a Semana dos Realizadores quem melhor deu conta de uma manifestação até certo ponto nova e amplamente presente na produção atual brasileira: tomar a própria realização artística como tema.
Não falamos, aqui, das manifestações também frequentes e muitas vezes tangenciais, mas mais facilmente detectáveis em sua genealogia, da incorporação do processo à filmagem, dado distintivo que tanto vem entretendo a academia nos últimos tempos. A questão aqui é anterior e um tanto mais literal: depois de décadas “prestando contas” pela relevância de um cinema de assunto – seja pela afirmação do pacto, como no Cinema Novo e na Retomada, ou pela sua negação, como na produção da Boca do Lixo – uma parte pulsante do cinema brasileiro parece, enfim, atingir posição de marginalidade suficientemente clara para se permitir buscar na poesia – arte marginal por inevitabilidade, ao menos em um país como o Brasil – um desejo inesgotável de evisceramento do tema. a criação artística passa a tomar como assunto a própria criação artística.
Talvez seja essa a maior constante apresentada nesses primeiros quatro anos de semana dos Realizadores, que não pode ser encontrada com a mesma intensidade em festivais razoavelmente próximos em seus recortes, como a Mostra de cinema de tiradentes ou o cine esquema Novo. É esse traço comum que conecta filmes formalmente tão distantes, dos mais conservadores politicamente aos mais suicidas em suas articulações. esse desejo de autorreflexão aparece em boa parte da produção de maneira mais evidente – Os Residentes (2010); Strovengah (2011); O Último Romance de Balzac (2010); A Casa de Sandro (2009); A Fuga da Mulher-Gorila (2009); Chantal Akerman, de Cá (2010); Mulher à Tarde (2010); Nego Fugido (2009); Os Monstros (2011); As Hiper-Mulheres (2011); Passos no Silêncio (2008); Testemunha 4 (2011); Sagrado Segredo (2008); Esse Amor que Nos Consome (2012); Cuauhtémoc (2012); Tudo Isto Me Parece Um Sonho (2009) – e permeia uma série de outros – Pacific (2009), Doméstica (2012), Avenida Brasília Formosa (2010), Laura (2010), O Céu Sobre os Ombros (2010), Estrada para Ythaca (2009) – em um momento em que o cinema brasileiro é tomado de assalto pelas bordas (bordas que talvez não reconheçam um centro… que talvez sequer tenham um centro) por um grupo de realizadores (não só diretores: realizar é tomado em seu sentido amplo) que preza tanto a produção cinematográfica quanto a reflexão sobre a criação. Nesse tempo específico, o cinema (re)nasce já circundado por uma produção de pensamento – de situação crítica, acadêmica ou espontânea – com a qual ele inevitavelmente se relaciona, da qual faz parte a semana dos Realizadores, com seus ciclos de debates que prolongam os filmes, e da qual fazem parte textos como este.
Uma mirada passageira por essa produção pode gerar a impressão de um vício pelos manifestos, pela afirmação de um projeto de cinema que os filmes mais tematizam do que realizam – às vezes se esparramando por dois, três filmes, em longos prólogos de uma obra que adia seu verdadeiro começo. Não é um argumento simples de se contrapor. Mas a questão aqui talvez leve a raízes mais profundas: em uma realidade anestesiada pela produção das imagens em série, pela desarticulação do olhar nas imagens “autoproduzidas” do telejornalismo e da publicidade (dois grandes agentes contaminadores do cinema brasileiro), há um gesto artístico em si nessa busca, nesse passo atrás que reconhece que, em um mundo onde câmeras são apontadas para todas as direções a cada segundo, talvez exista na investigação ontológica do gesto artístico uma possibilidade de diferença, de imagens que não se anulem. são filmes em que a reflexão é concomitante à realização. Nos casos mais bem-sucedidos, assisti-los é, de certa maneira, compartilhar a experiência de fazê-los.