Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2011.
É a segunda vez que a Cinética é convidada para cobrir o Cine Esquema Novo, festival de cinema realizado em Porto Alegre. De 2009 (data da última edição) para cá, o crescimento da mostra é visível, principalmente no número de filmes em competição: enquanto 4 longas e 22 curtas ou médias faziam parte da última edição, este ano o número subiu para 12 longas e 27 curtas. Deixando de lado tecnicalidades decerto relevantes (como o recorte ter abarcado um ano e meio de produção, por conta de uma mudança de data do festival – e por isso tanto Estrada para Ythaca quanto Os Monstros poderiam estar nesta seleção, para ficarmos em filmes de um mesmo grupo realizador), o que o Cine Esquema Novo 2011 reflete é um salto de produção. Como o festival há muito se coloca voluntariamente na fronteira de interesse entre o cinema e as outras artes visuais, levantando a cada debate a bandeira da invenção, sua programação mostra uma produção com essas características, que se amplia a olhos vistos e que está longe de ser contemplada totalmente pelo festival (filmes como Transeunte, de Eryk Rocha, Vigias, de Marcelo Lordello, Avenida Brasília Formosa, de Gabriel Mascaro, e Riscado, de Gustavo Pizzi, em nada ficariam desconfortáveis junto ao resto da programação). Se, por um lado, vários desses filmes já receberam atenção aqui na Cinética, o reagrupamento desses filmes em um festival de perfil tão claramente delimitado diz algumas coisas a respeito dessa produção e de alguns encaminhamentos recentes do cinema brasileiro.
Toda leitura panorâmica é generalizante, e toda generalização é prima próxima da grosseria. Não é, portanto, sem grosseria que se dará qualquer abordagem da programação do Cine Esquema Novo, algo que parece apropriado a todo festival pautado pela experimentação de linguagem e o tensionamento aberto dos limites da própria arte. Em grande medida, os 12 longas e 27 curtas em competição nesta edição são enquadrados nesse limite fronteiriço entre a integridade das obras e o seu evisceramento público, como as estruturas de concreto armado que são expostas como valor plástico na arquitetura moderna. É preciso manter o edifício de pé mas, ao mesmo tempo, desvelar o truque; a beleza deixa de estar na obra acabada, e passa a se expressar na revelação de sua construção; ou melhor, a obra se acaba em sua construção, e o processo deixa de ser processo para se tornar, também ele, obra. Não é difícil perceber o quanto esse sentimento está presente em filmes como Pacific (2010), de Marcelo Pedroso, O Céu sobre os Ombros (2010), de Sergio Borges, Chantal Akerman, de cá (2010), de Gustavo Beck e Leonardo Luiz Ferreira, ou Desassossego – O Filme das Maravilhas (2010), projeto de Felipe Bragança e Marina Meliande que existe – como tessitura e resultado – nos limites de sua realização coletiva. É claro que o Cine Esquema Novo clama para si um espaço no seio desta auto-reflexão – assumindo este ano, inclusive, a nomenclatura dada a esse cinema por Cezar Migliorin em seu artigo Por um Cinema Pós-Industrial, aqui na Cinética, tomando como manifesto exógeno algo que está mais para um esforço de mapeamento – e que ele se torna, com isso, uma chance de condensação, mesmo que inevitavelmente metonímica, das intenções, forças, fragilidades e questões desse cinema.
A percepção desse jogo de forças é essencial, pois se há algo que fica claro neste panorama atual de longas é o quanto, mesmo entre os mais ingênuos, há uma intenção notável de lidar com certas questões percebidas por parte da crítica e da academia no cinema recente. Assim como na adoção do termo “pós-industrial” como algo propositivo, há uma inversão crucial na ordem dos fatores: a crítica e a academia deixam de encontrar nos filmes a matéria-prima para a reflexão, e os filmes passam a buscar na academia e na crítica a matéria-prima de sua existência. É sintomático – embora nada injustificado – que um dos prêmios livres criados pelo júri deste ano tenha sido o de “melhor dispositivo”, dado a Chantal Akerman, de cá (foto), mesmo que o filme tenha interesse e força próprios que vão muito além do dispositivo. A produção intelectual é solicitada pela produção artística como fonte prévia de interesse e alinhamento de olhares; o cinema passa a não ser mais do que um sintoma do mundo, em vez de ser agente criador e transformador dele; os filmes deixam de ser fonte de “descobrimento” e se tornam fonte de confirmação. É uma produção em geral marcada pelo desejo de conhecimento, e a ausência de ingenuidade: não há mais filmes “bobos”. Em casos extremos, porém, a ingenuidade é sacrificada por uma consciência que beira o cinismo: todo filme é um conceito, um núcleo de compreensão e entendimento a ser decifrado; uma unidade de significação e linguagem. Toda realização é coerente a um “conceito” que lhe é anterior. Como criticar Ex Isto, de Cao Guimarães, filme que se mantém todo o tempo fidelíssimo a uma proposta inicial que é explicitada literalmente em cartelas de texto? Mas, ao mesmo tempo, como se satisfazer com um filme que se limita a representar, repetidas vezes, um conceito filmado, se armando feito um jogo de montar? Ou mesmo, como não perceber todo o esmero e precisão de artesanato de Mulher à Tarde (2010), de Affonso Uchoa, e ao mesmo tempo respeitar a insatisfação diante de um longa que enfilera repetições e variações de um mesmo procedimento?
Se há, no citado artigo de Cezar Migliorin, a demanda geral por novas formas de se encarar esses filmes, é necessário incluir, neste nó, a crítica. Pois a coerência interna em praticamente todos os filmes apresentados neste Cine Esquema Novo reafirma, no contato, o quanto a experiência artística pouco tem a ver com coerência. Se há um valor sobrenatural em Pacific, de Marcelo Pedroso, ele não está tanto em seus conflitos éticos, na expressividade de seu dispositivo, ou em seu caráter revelador de uma luta de classes claudicante; ele está na maneira como o material é articulado para levar o espectador ao indizível, àquele limite imprecisável na identificação dos procedimentos, mas que decorre deles para levar o espectador a uma experiência de mundo, na qual ele é incluído sem o distanciamento dos julgamentos “conceituais”. Se há, portanto, uma crítica possível em épocas tão lúcidas, ela necessariamente passa por um confronto de sensibilidades não tão demonstrável assim, com algo de desafiador, gratuito e louco, tentando retomar uma autonomia da experiência perante a compreensão e, principalmente, um choque de olhares. E embora existam filmes – ou, principalmente, momentos de filmes – que propiciem essa relação na atual posição, é preciso mudar radicalmente a maneira de olhá-los para se chegar a eles.
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Essa mudança de relação é, por sua vez, solicitada pelo que de melhor há nesses filmes: muito além de toda solidez intelectual e de todo esmero técnico, a efetividade de uma obra de arte depende de sua capacidade de gerar choques artísticos. A despeito de, por algum tempo, esse arcabouço teórico ter se tornado uma fonte rica para essa produção, é sensível o quanto a determinação de uma linhagem se torna gradualmente mais fácil, e os filmes passam a ocupar lugares que já lhes estão reservados previamente, em uma transição sensível e afetuosa rumo à justeza. Uma obra justa, porém, é aquela que é artisticamente justa, e que dê conta de sua natureza confrontadora e desestabilizante. Esses choques vêm justamente da inadequação às estruturas; só eles são capazes de reconfigurá-las.
Não é à toa que um dos melhores curtas em competição – As Aventuras de Paulo Bruscky (foto), de Gabriel Mascaro – assuma essa prerrogativa conceitual para sabotá-la por dentro: toda uma pesquisa de realidade paralela em Second Life (algo, por si, digno de inúmeras pesquisas acadêmicas) é curvada a absurdos mundanos como se jogar do alto de um arranha céu para depois sair andando como se nada tivesse acontecido – em uma troça, mesmo que incosciente, do niilismo festivo e inofensivo tão em voga em nossos tempos, que aparece em parte dessa produção -, aprender um novo passo de dança, ou dar uma cantada en français em um corpo de mulher encontrado junto aos destroços do avião da Air France, no fundo do mar. São inversões como essas que funcionam como pequenas descargas elétricas ao longo das projeções, e há pouco espaço para elas quando o que se busca é a solidez de uma demanda prévia.
São elas que reaparecem em alguns dos melhores curtas da competição, mesmo quando flertam diretamente com os problemas levantados até aqui: além de Paulo Bruscky, Balanços e Milkshakes (2010), de Erick Ricco e Fernando Mendes; Último Retrato (2009), de Abelardo de Caravalho; e Orawa (2010), de Felipe Barros – filmes que se livram do peso que os dá sentido por meio do apego inexorável às surpresas de sua própria materialidade – ou os momentos marcantes de filmes mais irregulares, como a partitura tocada pelo corpo de Meu Avô, o Fagote (2010), de Tatiana Devos Gentile, o bate-cabeça indígena de Cachoeira, de Sérgio José de Andrade, o sacrifício de 1976 – Lugar Sagrado (2010), de Carlosmagno Rodrigues e Alonso Pafyeze, o encontro com o desconhecido no final de Raimundo dos Queijos (2010), de Victor Furtado. Isso sem mencionar filmes que já ganharam merecido destaque por aqui, como Handebol (2010), de Anita da Silveira, As Corujas (2009), de Fred Benevides, e Náufragos (2011), de Gabriela Amaral Almeida e Matheus Rocha.
Com os longas inéditos, é inevitável a tentação de enquadrá-los como exemplos menos expressivos de correntes inegavelmente fortes neste quinhão do atual cinema brasileiro. Baptista Virou Máquina (2011), de Carlos Dowling, por vezes conquista interesse em todas as suas inversões de polaridade que fazem a máquina virar Baptista, o dentro virar fora, o morto parecer vivo, o trabalho parecer lazer, etc. Mas o jogo não tarda a se reduzir a esquema, em uma mistura de videoclipe (de fato, o filme é a trilha visual para um álbum da banda Burro Morto) de entusiasmo vertoviano com um barroquismo nonsense um tanto descabido, que leva o filme do excesso de certezas à mais pura desorientação, por vezes parecendo por demais controlado, por outras sem controle algum. A falta de controle é também mola propulsora de Luzeiro Volante (2011), de Tavinho Teixeira. Embora o filme traga planos sem dúvida marcantes em seu prólogo e epílogo, em seu bojo central essa ausência de controle rapidamente se revela falta de critério, com uma câmera que parece trocar o poder de uma imagem pelo descontrole de “todas as imagens”. A sensação é a de que somos tirados do Anjos Caídos (1995) de Wong Kar-wai e entregues a um Edukators (2004), ou a outro filme igualmente regido pela lógica da imagem qualquer.
Já Álbum de Família (2009), de Wallace Nogueira, sofre de mal bem diverso: documentário absolutamente calcado nas experiências familiares do diretor, o filme coloca a crítica na difícil tarefa de não poder separar a obra do diretor de sua própria vida. A questão é que toda vida é provavelmente interessante para quem a vive, e todo trauma é relevante para quem o carrega, o que não significa que ambos sejam matéria igualmente interessante a ser compartilhada em uma sala de cinema. Durante a exibição de Álbum de Família, dois filmes bem fortes vinham à cabeça: Embracing (1992), de Naomi Kawase; e La rencontre (!996), de Alain Cavalier. Mas tanto Kawase quanto Cavalier usam elementos absolutamente materiais para dar forma às inflamações de sua subjetividade: no caso de Kawase, um conjunto de polaróides antigas; e no de Cavalier, objetos variados que demandam as construções poéticas do autor e de sua companheira. Esse apego material funciona como uma espécie de âncora dramaturgica nesse mergulho profundo no eu, e é bastante expressivo que quando Wallace Nogueira se confronte com ele – o álbum de retrato que dá título ao filme – o filme chegue ao final, deixando-o pelas bordas. Álbum de Família é por demais flutuante em sua afetividade para se organizar de fato como dramaturgia, mas essa afetividade é raramente tensionada a ponto de ser mais do que o registro sincero, justo e um tanto enfadonho de pedaços de uma vida.
Como todos os longas restantes (e mesmo alguns curtas) em competição já ganharam textos detidos na revista, e o efeito nas revisões é quase sempre residual, não é de todo surpreendente que os respiros de inegável vitalidade do festival tenham aparecido em um nicho frequentemente ignorado mesmo pelo circuito exibidor hiper-especializado que é o dos festivais de cinema: os filmes de média-metragem. São quatro deles, portanto, que ganharão atenção mais focada – não só por a oportunidade de confrontá-los novamente ser menos provável, mas principalmente porque neles se reproduziram com maior proficuidade os enigmas que alimentam toda crítica.
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Cat Effekt, de Gustavo Jahn e Melissa Dullius
“A vida só parecia digna de ser vivida quando se dissolvia a fronteira entre o sono e a vigília, permitindo a passagem em massa de figuras ondulantes, e a linguagem só parecia autêntica quando o som e a imagem, a imagem e o som, se interpenetravam, com exatidão automática, de forma tão feliz que não sobrava a mínima fresta para inserir a pequena moeda a que chamamos de ‘sentido’. A imagem a e a linguagem passam na frente”. A citação é de Walter Benjamim, em O Surrealismo – O último instantâneo da inteligência européia, e cabe tanto quanto resposta frontal a um cinema que hoje aposta nas tais moedas do “sentido”, como uma apreensão indireta de Cat Effekt, o mais novo delírio de Gustavo Jahn e Melissa Dullius. Não que Cat Effekt tenha, de fato, qualquer proximidade com o surrealismo (embora a idéia de um “instantâneo da inteligência européia” faça bastante sentido, não só por o casal de diretores estar radicado na Alemanha, mas principalmente por trabalharem um imaginário fortemente europeu em seus filmes, sem culpa ou complexo de inferioridade), mas a maneira de Benjamin lidar com a criação livre do surrealismo (no caso, o literário) em muito se assemelha com a sensação de se ver Cat Effekt.
A imagem passa na frente do sentido. Cat Effekt tem um apego material raríssimo no cinema brasileiro – talvez só encontrando alguma equivalência em diretores como Carlosmagno Rodrigues e Carlos Adriano – que usa a película 16mm como fonte expressiva de criação artística, e pensa o plano como unidade de sentido em si, mesmo quando em relação com outros planos. Não há profundidade de camadas; tudo é absolutamente superficial em Cat Effekt, e é justamente dessa equivalência entre significante e significado que surge muito da força do filme: a fantasmagoria se dá na intervenção direta na película, nas solarizações e manchas coloridas obtidas na revelação caseira, criando uma relação que passa mais por sensações e climas do que por uma construção dramática mais tradicional. De fato, muito do assombro causado por Cat Effekt vem de um certo desejo do filme de ser cinema “ruim”, algo expresso não só na revelação precária do 16mm, mas também por ele parecer, por vias tortas, um filme barato do leste europeu querendo emular uma atmosfera da nouvelle vague, com seu som parcamente sincronizado e imagens que misturam o misticismo da primeira fase de Philippe Garrel com o trabalho de gênero dos primeiros Godard, realizados feito filme B.
Não é exatamente por esse alinhamento, porém, que Cat Effekt é um filme especial. O que salta aos olhos no trabalho dos diretores é que toda essa aparente mediação não é mais do que um impulso para um trabalho de assombro muito particular, chegando ao místico por vias absolutamente concretas, construindo a tal sensação de indizível por uma articulação precisa da matéria. Tudo parece funcionar junto; nada é decifrável: toda imagem precisa ser experimentada em sua integridade, vivenciada em plena imersão dos sentidos, e os ruídos, defeitos e efeitos são essenciais para a construção dessa relação. De fato, há pouco que parece conectável entre o cinema de Gustavo Jahn e Melissa Dullius e sujeitos como Tarantino, Pedro Costa, Michael Mann e o próprio Godard pós-História(s) do Cinema; mas todos eles compartilham esse mesmo apego à experiência da sala cinematográfica como algo absolutamente mediado por características incontroláveis, que aqui são assumidas como potencial de criação, sem ter como fim a pesquisa dos ditos cinemas experimentais.
Número Zero, de Cláudia Nunes
Número Zero é a organização e ressignificação de um material captado por Cláudia Nunes na década de 1990, junto a um grupo de jovens moradores de rua de Goiânia. Apesar de um recorte temático aparentemente “velho”, o que impressiona em Número Zero é a maneira como o filme cria sua mise en scène em respeito à batalha constante entre quem filma e quem é filmado. Os moleques protagonistas mexem na câmera, se reposicionam incessantemente no espaço, surpreendem a cada nova resposta, exigindo que o filme se equilibre no fio tênue da instabilidade. Número Zero joga todas as inquietações éticas do documentário no esgoto pré-fílmico quando traz para o proscênio justamente essa troca: quando se filma alguém que não reconhece a posição que se espera que ele ocupe, todo movimento estético – toda relação de poder – está em permanente negociação.
O filme de Cláudia Nunes é de uma entrega admirável, sem usar suas prerrogativas “importantes” como substituição de uma força plástica, de fato. Ao contrário: captado em super VHS preto e branco, com uma frontalidade tão absoluta que por vezes parece trazer um dado de irrealidade a um material tão francamente real, o filme encontra o equilíbrio raro entre pictorialidade crua e riqueza semântica de Crianças em Sevilha (foto), de Henri Cartier-Bresson. A tensão entre documentarista e personagem contamina a própria cena, deixando o espectador no suspense de um acordo social absolutamente incerto, sem saber o que se pode de fato esperar daquela relação.
Walter, de Pedro Henrique Ferreira
Dos quatro médias em destaque, Walter talvez seja o que mais se aproxime dessa impressão do “cinema conceitual” tão presente até aqui. Afinal, é um filme armado de uma série de procedimentos que falam por si só: um vídeo que traz as cartelas e o silêncio do cinema mudo, narrando os últimos dias de Walter Benjamin, na cidade de Carapebus, no estado do Rio de Janeiro. Tudo que traz algo de solene e respeitoso a Walter é sabotado pelo próprio absurdo de suas escolhas. Afinal, por que emular o cinema silencioso (ainda mais em vídeo e em cores) se Walter Benjamin morreu 10 anos depois de o cinema ter se tornado sonoro? Ora, pelo mesmo motivo que fundamenta colocá-lo em Carapebus entre mesas de sinuca, churrascos e máquinas de videokê, escorado por uma epígrafe de Galvão Bueno: nenhum.
Walter é de uma gratuidade absoluta e é justamente nessa gratuidade que ele promove preciosos deslocamentos de percepção, tratando o que é reverente com enorme irreverência, mas também sendo respeitoso diante do vulgar. A força do filme provém justamente da percepção de quão absurda é sua premissa, que passa a ser reverberada em uma bipolaridade entre a solenidade e a franca picaretagem. Essa tensão é especialmente clara nos intertítulos, por vezes mimetizando uma falsa velha ortografia, que chama atenção – pelo que diz, e pela maneira que o faz – para seu anacronismo latente. Embora o filme nem sempre seja preciso na dosagem de seu humor, seus momentos de frescor e vida são de uma leveza extremamente bem vinda, pois ela aporta a medida justa de sua gravidade.
Permanências, de Ricardo Alves Júnior
Por fim, Permanências (foto), de Ricardo Alves Júnior, poderia ser rapidamente descartado pela adoção de uma agenda já bastante comum no cinema contemporâneo: o esvaziamento do plano, o esgarçamento da duração, a geografia de uma decadência urbana, as possibilidades do cinema como expressão do estático, etc. Além disso, há também os ecos cristalinos de Pedro Costa, hoje em dia tão recorrentes em uma certa corrente do cinema brasileiro que já gerou rumores de que Pedro Costa seria, de fato, mineiro. Mas enquanto o cineasta português ocupa os conjuntos habitacionais das Fontainhas para enxergar Ventura como um herói, Ricardo Alves Júnior só se depara com demônios.
Permanências é um filme diabólico não só pela maneira como as personagens se colocam em cena – algo bastante claro no tecladista que amarra as duas pontas do filme, como uma espécie de Fausto – mas também pela forma como o diretor adota toda uma gestalt do cinema contemporâneo para questioná-la por dentro. Afinal, se filmes como Estrada para Ythaca e Casa de Sandro, de Gustavo Beck, imprimem na imagem estática um desejo de congelamento da fotografia parada, Permanências parece afirmar exatamente o contrário: seus planos duram o tempo suficiente para conservarem um movimento junto ao olhar, a despeito de sua estaticidade. O movimento, portanto, não está nem no que é enquadrado, nem na câmera que enquadra; mas o agenciamento entre essas duas instâncias obriga o olhar do espectador a se movimentar incessantemente por dentro do plano, no esforço de reinflar o espaço da tridimensionalidade que lhe é natural, mas que foi extirpada pela bidimensionalidade do cinema.
Um dos planos, talvez o mais belo, mostra um pedaço de janela de um apartamento, entrecortado pelas pilastras de um corredor. A colocação da câmera, porém, chapa toda a profundidade em uma única dimensão; ao longo de toda a duração somos convidados a remontar essa imagem, buscando os níveis de profundidade que aparecem chapados na bidimensionalidade da tela, aguardando sempre por uma pequena ruptura que fará a imagem estática ser, novamente, uma imagem em movimento. Todo o tempo despendido na compreensão da imagem é rapidamente abalado por um único gesto, uma simples perturbação que faz com que cada plano deixe de ser uma imagem estática: uma porta que abre, um movimento de cabeça, uma variação de luz. E nessa surpresa do mínimo – pensemos aqui em Five (2003), de Abbas Kiarostami – Permanências vai ao âmago da destituição do específico cinematográfico em relação à fotografia (“as folhas se movem!”, dizia Méliès, diante de um filme dos Lumière) promovido pelo cinema contemporâneo para, enfim, resgatá-lo.