Skip to content

Handball (Handebol, 2010), Anita Rocha da Silveira

Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.

Entre-estar

O universo adolescente parece ter encontrado na produção de curta metragem seu maior refúgio representativo no cinema brasileiro. Filmes como No. 27 (2009), de Marcelo Lordelo; Não Me Deixe Em Casa (2009), de Daniel Aragão; Corpo no Céu, de Luísa Marques; Eu e Crocodilos (2009), de Marcela Arantes; e Laurita (2009), de Roney Freitas, debruçam-se sobre essa suposta entre-fase que liga a infância à vida adulta, partindo de situações ou sentimentos que são próprios a ela, e que os filmes restauram pela encenação de certos eventos (em geral, traumáticos). Mas Handebol, de Anita Rocha da Silveira, vai além. Vai além, pois interessa-lhe menos encenar certos rituais da adolescência (algo que o filme também faz com preciosa naturalidade, mas que não lhe é central), e mais incorporar um sentimento adolescente à construção do filme.

A adolescência, portanto, deixa de ser pensada como universo demográfico e passa a ser encarada como manancial de potência estética para a criação. Handebol percebe na idade a zona mista entre uma primeira tábula rasa social (pensemos aqui na infância de Tauri, de Marcio Miranda Perez), e a plena convencionalidade da vida adulta. É justamente aí que está seu maior interesse temático, pois essa oscilação entre estados contraditórios é também característica da própria criação artística. A adolescência interessa, portanto, por ser algo em constante transformação, flutuando entre o conhecido e o desconhecido, o diegético e o não-diegético, a infância (com toda a carga metafórica de curiosidade, descobrimento e sensualidade que o termo carrega) e a vida adulta.

Handebol é um filme notável por perceber exatamente qual aspecto da natureza da questão ele quer abordar, e usá-lo como motivação artística. Os sentimentos não são somente encenados; eles ganham traduções visuais. A sensação de não-pertencimento é incorporada pela estranha intimidade dos quartos montados em lojas de departamento; a latência de se estar em um constante devir vem por uma longa sequência em fusão, onde as personagens parecem movidas pela vontade de tocar seus outros eu’s (do passado e do futuro); as canções dos Beach Boys, nostálgicas de uma época que não é a das personagens nem a da diretora, trazem um acento imemorial que reforça que interessam menos as situações (essas sim sujeitas às transformações do tempo), e mais a sensação que as atravessa.

Visualmente, Anita alcança essa sensação pela constante promoção de ambiguidades na encenação. Ao mesmo tempo em que os planos em slow motion evocam as cenas dos skatistas-anjos em super-8 de Paranoid Park (2007), de Gus Van Sant, o recurso aqui ressalta um peso carnal idealizado que está igualmente próximo da sequência do vestiário feminino em Carrie (1976), de Brian de Palma – combinação que faz com que o filme mais próximo de Handebol seja mesmo Bom Trabalho (1999), de Claire Denis. A épica briga final carrega, aqui, tanto de horror quanto de gozo, de liberação, de alívio cômico, que vêm pela naturalidade com que os corpos se entregam a uma coreografia de choque.

O erotismo está sempre próximo da violência, mas o mais interessante é que essa percepção não é necessariamente apocalíptica (novamente, Tauri) ou traumática (Não Me Deixe Em Casa). Há, na juventude, um prazer enorme em se colocar em movimento, mesmo quando se tem a consciência que esse movimento é igualmente produtivo e destrutivo (o jogo de handebol; o “vídeo incrível” do ciclista tirado do People & Arts). Esse prazer vem justamente da percepção, construída e ratificada pela vivência social, de que o jovem está ainda em processo de definição (não estaríamos sempre?), vivendo o momento em que as expectativas do mundo ainda não condicionaram as personagens a se comportarem de uma determinada maneira, mas lhes dá lucidez suficiente para perceberem que essas convenções existem, e esperam por elas na próxima esquina. A juventude parece guardar a última possibilidade de um suicídio justo, e isso, em si, é igualmente angustiante e libertador.

Anita filma justamente esse limbo (ou Éden) temporário, onde há mais pulsões do que chances ou capacidade de extravasamento. Nesse mundo há personagens que, de tão cheias de vida, vertem sangue pelo nariz; mas, para capturar essa potência, é preciso filmá-las como mortas, congeladas neste flerte com o outro (que pode ser tanto um outro sexual, quanto a própria vida por vir). A beleza está justamente nessa propensão ilimitada ao risco, onde morrer e matar em uma partida de handebol (e não por ela) é de uma nobreza inquestionável. Pois, depois de morta, basta um leve tapa no rosto para fazer voltar a vida, tomada pela excitação das infinitas novas maneiras que se poderá morrer novamente.

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *