Publicado originalmente na Cinética em Julho de 2010.
Ao mínimo
Theo Angelopoulos alcançou um breve período de quase unanimidade cinéfila e crítica com este Paisagem na Neblina, lançado no Brasil no começo da década de 1990. Filme de um rigor notável, Paisagem na Neblina parecia ser o fecho definitivo e perfeito de um ciclo de desencanto pós-Maio de 1968, que rendeu obras-primas indiscutíveis (Profissão Repórter, de Antonioni), sintomas de picaretagem (O Último Tango em Paris, de Bertolucci) e grandes filmes que saíram de moda (Paris, Texas, de Wenders). Em todos os casos, o choque com as utopias dizimadas criava personagens condenados a uma errância que sequer se traduzia em busca, como se o cinema “autoral” não tivesse mais para onde ir, uma vez que a briga maiúscula havia sido perdida. O cinema parecia condenado à sua própria latência.
É justamente por estar um pouco à margem desse centro nervoso artístico (e é uma ironia do mundo moderno que a Grécia, de todas as nações, pudesse ser considerada marginal para o pensamento artístico em qualquer momento da história humana) que Angelopoulos consegue, com impressionante inteireza, dar conta dessa mesma distopia com quase duas décadas de atraso. A semelhança da trajetória das personagens com esse estereótipo angustiado esconde, por sua vez, uma motivação diferente: o desamparo órfão de Angelopoulos não é exatamente com o projeto de mundo que morre em 1968, mas sim com um cinema grego que talvez nunca tenha existido com real expressividade no panorama mundial, e do qual Angelopoulos segue como o maior nome. Não à toa, suas personagens são crianças que, na busca pelo pai, encontram um fotograma de cinema perdido, aparentemente em branco. Paisagem na Neblina é um filme não só sobre o cinema, mas sobre o fotograma, o plano – o átomo cinematográfico indivisível, ao qual não sobrevivem os travellings, as panorâmicas, a câmera no ombro. Mesmo o travelling mais longo é apenas uma sucessão de planos estáticos, e são a essas duas coisas – o plano e a estaticidade – que Angelopoulos endereça suas preocupações. Em época de reavaliação premente de um diretor agitado, para o bem e para o mal, pelas marés da moda e dos costumes, é só retornando ao plano, ao indivisível, que podemos reapreender o valor de seu cinema.
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De todos os muitos planos extraordinários de Paisagem na Neblina, escolho três. O primeiro, que pode ser reduzido a um único fotograma, mostra os dois irmãos na estação de trem, logo após terem sido retirados da composição pelo fiscal. As crianças aparecem no centro exato do quadro; à sua direita, as pilastras destacam o policial que impede que elas sigam viagem; e à esquerda, com uma simetria asfixiante criada na proporção do 1:1.37, passa o trem. A posição cuidadosa de cada elemento no quadro gera, nos irmãos, uma concentração de forças atordoante: há a vontade de partir e a obrigação de ficar; o passado, o presente e o futuro; mas a maneira como os elementos são dispostos no quadro dá a impressão de que todas as forças partem das crianças, ao mesmo tempo em que agem sobre elas.
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Os outros dois planos são conectados por um elemento de cena que, pelo posicionamento, a interação com as personagens e o tempo de presença no quadro, materializa o pensamento de uma personagem na associação entre os planos. No primeiro, um caminhoneiro que deu carona aos irmãos leva a garota para a carroceria, escondendo-a em um fora-de-quadro criado no centro do quadro. A ação que se dá fora do alcance de nossos olhos dura poucos minutos – talvez sequer tempo suficiente para que possa haver um estupro – mas que trazem o peso da eternidade. A garota desce do caminhão e o sangue escorre por suas pernas. É tudo que vemos: o antes e o depois, e uma bolha de tempo cinematográfico que, mesmo sem cortes, pode ou não corresponder ao tempo real.
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Mais tarde, na praia, os irmãos reencontrarão um motoqueiro que os ajudara em um momento anterior do filme. Ao fundo, um trailer evoca de imediato a imagem da carroceria do caminhão e o que supomos ter acontecido dentro dela – talvez por Angelopoulos reservar, ao trailer e ao homem, o mesmo espaço do quadro onde antes esteve o caminhão. É como se o trauma permanecesse impresso naquela parte do negativo até o final do filme, fazendo sombra sobre qualquer elemento que ocupasse aquele mesmo lugar. O rapaz convida a menina a dançar, que resiste ao convite. Ele a pega pela mão e, com uma panorâmica, Angelopoulos vai lentamente tirando o trailer do quadro. É como se a lembrança da violência anterior fosse, em um primeiro momento, projetada pela menina no homem que conhecera em sequência, e que também lhes dera carona. Aos poucos o rapaz ganha a sua confiança, e o trauma associado do ato infilmável vai sendo deixado para trás – tanto pela personagem, quanto pelo filme – até que não exista mais trailer, e sobre apenas a areia e o mar.
A cada revisão de Paisagem na Neblina, é certo que outros planos, tão ricos e marcantes quanto esses, nos surpreendam como uma revelação. Esse velho cinema de procedimentos, onde a história é sempre contada e escrita pela câmera e pela disposição dos objetos no quadro, com o passar do tempo perdeu espaço e prestígio para um cinema da fluidez absoluta. A reação da geração posterior fez com que uma escritura tão marcada quanto a de Angelopoulos fosse datada em vulgaridade. Retomando Paisagem na Neblina hoje, em momento em que a banalização mina o cinema de fluxo em inanição, o cuidado do cineasta com a construção de cada fotograma volta com um vigor extraordinário. Em parte, isso se dá por os grandes filmes serem organismos vivos, em contato constante com a história que lhes é anterior e subssequente. Mas também porque Angelopoulos, com seu domínio ímpar da mise en scéne e um talento notável para contar histórias, realizou um filme onde cada novo plano sobrevive como um enigma, e cada fotograma em branco é capaz de acobertar, de fato, uma árvore. Basta se comprometer a enxergá-la.
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