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The Kid with a Bike (Le Gamin au Vélo, 2011), Jean-Pierre & Luc Dardenne

Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2011.

Sistema de qualidade

“O que é difícil de suportar é a linguagem de teólogo protestante, artificialmente honesta, artificialmente cordial e simpática, que atravessa todo o seu livro. Como é antiquado o seu método, ditado por uma atitude embaraçada e pela ignorância linguística, de impor às coisas uma iluminação simbólica!”

Walter Benjamin sobre a literatura de Duhamel em O surrealismo: o último instantâneo da inteligência européia.

As tentativas de fundamentar a relevância do cinema dos Dardenne passam, inevitavelmente, por ao menos um de dois caminhos que poderiam ser encarados como evidência de grandeza: a potência física conjugada pela proximidade entre a câmera e o corpo das personagens, em uma abordagem específica que já gerou um sem número de imitadores; a síntese entre a brutalidade dessas presenças cênicas e a sua função narrativa, respeitando ao mesmo tempo um repertório que lhes dê palpabilidade (dinheiro, trabalho, rotina, relações, etc) sem com isso alijar-las de seu encaixe dentro de um sistema narrativo bastante límpido, muitas vezes primário, que visa um “bem maior”. O que se torna evidente logo em Rosetta (1999) é o quanto não há aderência entre essas duas instâncias, como se a forma de filmar os corpos funcionasse em movimento completamente independente do sistema no qual ela está inserida – com exceção, talvez, de A Promessa (1996), seu filme “pré-estilo”, e sintomaticamente o melhor e menos sistemático. Importa pouco que a forma e o que ela privilegia – as modulações do corpo, das inflexões dos atores e da maneira de eles se colocarem e serem colocados em cena – tenham compromissos tão nobremente contemporâneos; no cinema dos Dardenne, essa pulsão será necessariamente aprisionada em um jogo de montar de absoluta primariedade. 

O Garoto da Bicicleta é um exemplo ideal pois expõe com clareza admirável os lobos com vestes de cordeiro. Faz-se um filme essencialmente sobre um corpo que tenta não se deixar confinar pelas paredes violentamente pré-estabelecidas pela sua primeira percepção social (a família e seja lá o que possa substituí-la em sua ausência), mas para buscar essa suposta liberdade ele precisa se agarrar sempre a uma nova ordem (seja ela a personagem de Cécile de France, os parceiros temporários de gangue, ou, em última instância, a moralidade, Deus, etc). Pois mesmo que Cyril, esse fio em chamas que chicoteia as paredes do próprio filme, tenha uma força presencial inegável, para os irmãos Dardenne ele sempre será apenas um elemento narrativo que carrega consigo lições justíssimas sobre valores como compaixão, piedade e perdão. Interessa menos que ele corra para fora do filme, e mais que seu destino seja assegurado nas mãos de um adulto correto e responsável que lhe criará também como um adulto correto e responsável, nessa cadeia evolutiva que os filmes dos irmãos tratam como círculo vicioso. Mas não há presença cênica possível quando se filma como os católicos não-praticantes vão à missa, apegados à nobreza de valores que se colocam acima da prática, da existência e do filme. Cyril pode querer se rebelar à vontade, mas no cinema dos Dardenne até mesmo os rebeldes têm uma função estática, definida e intransponível. A ordem do todo sempre prevalecerá.

Não é de se surpreender, portanto, que essa tal excelência narrativa se desenrole por um be-a-bá simbolista que o filme desfia sem qualquer constrangimento, trazendo uma música falsamente bressoneana para coroar com violinos cada momento de crise ou superação – como o videogame avisa quando se passa de fase. Pois O Garoto da Bicicleta parece chegar a Bresson pela alegoria, sem perceber o quanto a força alegórica só é possível se ela contamina, também, a relação com o filme: a barbárie de Au hasard Balthazar (1966), sem dúvidas um filme a ser comparado com o ciclo de abandonos deste O Garoto da Bicicleta, só pode se transformar em Via Crúcis porque somos colocados em igual choque diante de toda a gratuidade que norteia a construção do próprio filme (duas violências: a diegética, encenada para o filme, e a do filme com o espectador) como fábula moral que não se completa em si, pois depende dessa incompletude para se realizar junto ao espectador. Não é à toa que em Bresson, ou no Shyalaman de A Vila (2004), o simbolismo só possa ser “aberto” no final – e mesmo com a chegada dos Reis Magos no epílogo de Balthazar, ou o nocaute do alien em Sinais, o que é possível fazer com eles que não constatar sua existência? A experiência artística acontece equilibrada em um delicado binômio entre a inegável existência e o mais absoluto mistério: sei que existe, sei que ele está diante de mim, mas as razões para esse reconhecimento permanecem misteriosas, exceto essa estranha capacidade de tornar físico o impalpável. Quando os tiros soam na banda sonora das cenas finais de Paisagem na Neblina (1988), de Theo Angeolopoulos, é inegável que os tiros foram disparados. Mas o que as balas acertaram se só temos seu eco, sua reverberação em cena onde os corpos se dissolvem na escuridão da noite? Já em O Garoto da Bicicleta – filme onde os meios levam necessariamente sempre ao mesmo fim – está tudo dado muito rapidamente: o pai de Cyril vende sua bicicleta quando o abandona no orfanato. A bicicleta era o último elo que o garoto enxergava com o pai, e essa ligação é quebrada na primeira necessidade de se ganhar dinheiro e seguir com a vida deixando os cacos para trás. Feito o paralelo, veremos um jogo de aproximação e repulsa entre “pai” e filho que estará espelhado em todas às vezes que roubam sua bicicleta: Cecile de France a compra de volta, e isso lhe dá direitos maternos sobre o garoto; quando os jovens bandidos a apreendem para depois devolvê-la, ganham com ela pedaços da paternidade de Cyril. Cada fuga leva a outro sistema, afinal, a bicicleta, o único meio possível de deslocamento, foi confinado ao mais estanque simbolismo. Mas não há sistema mais diabólico e nefasto do que o do próprio filme, condenando Cyril à impossibilidade da fuga e da existência individual. O Garoto da Bicicleta é o antagonismo absoluto do compadecimento de Murnau por sua personagem em A Última Gargalhada (1925): os diretores serão os algozes finais e qualquer chance de liberdade.

Tudo isso já seria um problema, mas nada comparável à grande fragilidade de O Garoto da Bicicleta: seu sistema simbólico é tão fechado e primário que todo o filme pode ser cantado previamente, como se o clássico narrativo fosse confundido com os manuais de roteiro. Se isso poderia liberar o filme e o espectador para flutuar nas tais pulsões dos corpos em contato com a câmera, essa chance é tolhida pelo automatismo de quem toma a figura estilística por estilo, com a mesma proximidade de câmera, o mesmo balançar de quadro, a mesma aderência que os Dardenne filmam toda e qualquer coisa, em uma pré-formatação que não produz qualquer ruído (como na abordagem “científica” de um Hong Sang-soo, ou do último James Benning) ou fagulha. Desde Rosetta – com melhores e piores momentos – os filmes do Dardenne talvez sejam a mais precisa ilustração da impressão lugar-comum de quando um filme parece carregar um outro filme aprisionado dentro de si.

Nesse sentido, é bastante ilustrativo que, em todo seu desejo alegórico, O Garoto da Biciceta só encontre alguma analogia possível quando encena uma encenação. Em dado momento, um dos garotos que roubara a bicicleta de Cyril no passado toma posse dela novamente. Mas, dessa vez, o roubo se desdobra em um teatrinho de cartas marcadas: de quando em quando, o ladrão pára com a bicicleta e espera que Cyril chegue bem próximo dele, para só então correr novamente. Esse jogo desigual, naturalmente, só pode levar à boca do lobo, quando toda a gangue da qual o garoto faz parte espera Cyril no final dessa sua jornada. Há uma incômoda sintonia entre esse teatrinho mal encenado e a representação bem encenada pelos Dardenne: em ambos os casos, uma promessa de liberdade serve apenas como isca para que terminemos exatamente onde o mastermind daquela pequena representação nos deseja colocar, comendo cada pedaço de queijo que marca a trilha até a ratoeira.

Escrevendo sobre a política no teatro de Bertold Brecht, Jacques Rancière fala da necessidade do artista crítico em contrapor opostos para determinar o peso das situações. “É preciso que os assuntos de couve-flor de Arturo Ui sejam mais do que assuntos de couve-flor, que eles sejam a alegoria transparente da realidade econômica que sustenta o poder nazista.  Mas também é preciso, ao inverso, que sejam apenas assuntos de couve-flor, uma realidade estúpida, insensata, que deve suscitar aquele sentimento de absurdo que nutre ao mesmo tempo o puro prazer lúdico e o sentimento do intolerável”. Temos aí um resumo ideal do sistema dos Dardenne, em que todo filme é igualmente um conto-de-fadas de fundo religioso (mais do que uma crônica social) e, ao mesmo tempo, uma narrativa dura sobre banalidades concretas. É o tipo de ambivalência que permite o cinismo do alegorista que diz não haver alegoria nenhuma em sua concretude, que diz ser apenas um filme sobre um garoto e uma bicicleta – na perversão do falso cinismo de John Ford quando dizia não fazer filmes políticos, sabendo bem o custo que um reconhecimento disso o traria.  Nos filmes dos irmãos Dardenne, as banalidades são filmadas como um conjunto de rituais, enquanto as questões de existência, vida e morte, ganham o tratamento casual da margem ou do fora do quadro – e não é à toa que os poucos momentos de força individual do filme venham de uma presença gráfica surpreendentemente ostensiva e central, embora até elas sejam acentuadas com o acidente dos falsos acasostão caros aos irmãos. E da tensão entre essas duas instâncias, surgem os valores indiscutíveis com a necessária aderência dos desviantes ao resto do rebanho, abdicando do movimento para que a comunidade e o filme possam prosperar. O que resta são bem acabados sistemas de representação que se impõem como um nobilíssimo e enfadonho quebra-cabeças de quatro peças.

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