Black Box (Caixa Preta, 2022), by Bernardo Oliveira and Saskia, is a medium-length film screened as part of the thematic series Cinema Mutirão on the second day of Mostra de Tiradentes. The film, which is roughly 50 minutes long, carries in its title a rich double meaning that translates just as well to English.
On the one hand, the black box has become a recognizable metaphor for the film theater itself, especially in discussions surrounding site specificity and the exhibition of moving images in museum spaces. Frequently used in contrast with the gallery paradigm of the white cube, the black box displaces the focus of attention from the screen to the surroundings, assessing the role of the cinematic apparatus (the black walls, the seats, the position of the projector) in what we understand as a cinematic experience. In a sub-chapter of the book Exhibiting Cinema in Contemporary Art (2013) expressively titled “Black Box/White Cube,” Erika Balsom delineates the features around the forward slash:
“The movie theater is a mass cultural space of boisterous entertainment and clandestine eroticism. The anonymous relationality, the darkness, the giganticism of the screen, the imperceptible rhythms of the flicker emanating from the projector – all these elements serve to buttress the powers of the film itself, consolidating the spectator’s attentive fascination and engrossment. The protocols of the gallery space are strikingly different. The light level is higher and the visitor wanders at will, perhaps speaking to a companion. The activity is endowed with a sense of cultural respectability, even erudition, and tends to lack the absorptive capacity of the cinema.”
Black Box, the movie, is certainly nurtured by the conditions of the theatrical exhibition space. The frequent use of black screen interludes, the omnipresence of sound, and the projection itself all collaborate in the creation of meaning, and in the change of status of the images themselves: it is, for the most part, a found-footage film, and, as is often the case in this genre, part of the effect of the film comes from the theatrical presentation of images and that were originally meant elsewhere (social media, news reports, voice memos, etc).
But in another respect the Black Box here is also pushing toward the wandering that Balsom associates with the white cube: a black box is also the popular name of the a device called “flight recorder,” which stores all the data created by an airplane after it takes off. If all goes well, this other black box is meant not to be used, yet it becomes a crucial asset if everything goes wrong. If a plane crashes, in most cases the retrieval of the black box may be the only possibility of finding out what has happened and preventing it from happening again in the future. Reading the transcription of a black box is a powerful—and sometimes too powerful—dramatic experience. Since we already know how those events will turn out, the black box ends up storing the mechanics of the “how,” describing a sequence of incidents whose outcome is presented as inevitable from the very beginning.
If Black Box, the movie, is a black box as well, what is it for? Bernardo Oliveira, Saskia, and musician Negro Leo created the film as part of a larger artistic project called Ciranda do Gatilho, which can perhaps be summarized as collective ruminations on the experience of the black Atlantic in a Latin American context. It is, therefore, a record of a disaster that is also a displacement: the middle-passage. Yet, there is something peculiar about this black box. Instead of reconstituting what has led to the irreversible events it seems to record what has come after it. It is, therefore, a documentation of “how” what has happened keeps happening, unfolding and actualizing itself as daily brutality, but also of “how” people have kept escaping from it, dodging it, transforming it: a record of flight.
The film is more than a collection of images and sounds. Unlike, for instance, Eduardo Coutinho’s A Day in Life (Um Dia na Vida, 2010)—a documentary feature entirely comprised of television footage where intervention by the director is kept at a minimum precisely to emphasize the work of site, letting the displacement of those domestic images to the film theater do most of the work—in Black Box all matter is bent, squashed together, saturated to the point that they are not images and sounds as much as their recollection, spiraling in from an unknown place one recognizes despite never having been there. That place, however, is the past as much as it is the future. It is, in that sense, a dizzying diasporic film, where the diffuse sense of origin caused by the middle-passage leads to a multiplication of presence—“I am Juçara Marçal… I am Sueli Carneiro… I am MC Carol… I am André Capilé,” the male voice says, “I am the third millennium”—and the desire not of a future, but of all future(s).
The result is close to a mixtape, but a tape that has been used multiple times, to the point that the previous songs cannot be fully erased from the magnetic strip anymore, so its latest iteration is also an inevitable and non-definitive interaction with what it used to be, with what it just was. Precariousness as addition. The polyphonic flow is in a way reminiscent of Terence Nance’s Random Acts of Flyness (2018-), but while Nance’ achieves this polyphony by orchestrating an ensemble of filmmakers, Black Box collects the marvelous debris of coexisting presents—from Aguidavi do Jêje to the riveting pentecostal gira by Pastora Ana Lúcia at the end of the film (without closure)—as interference, as noise. In 1969, Aldo Tambellini made an extraordinary found-footage film called The Day Before the Moon Landing. Similar to Um Dia na Vida, this other medium-length film gleans TV broadcasts one day before Neil Armstrong and Buzz Aldrin landed on the moon. Black Box, on the other hand, reverses that premise into a paradox: what is the trajectory of a spaceship that has never landed? And what would the moon do if it were to find these records?
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Mostra de Tiradentes 2023 – #02
Caixa Preta (2022), de Bernardo Oliveira e Saskia, é um filme de média-metragem exibido como parte da série temática Cinema Mutirão no segundo dia da Mostra de Tiradentes. O filme tem cerca de 50 minutos, e carrega em seu título um duplo sentido que se torna muitos.
Como ponto de partida, a caixa preta se estabilizou como metáfora disseminada para o próprio cinema—neste caso, não a modalidade artística, mas o espaço mesmo de exibição dos filmes. O cinema como “black box” é imagem recorrente em discussões sobre site specificity—o lugar de exibição a que as imagens em movimento são destinadas—que ganhou maior tração quando elas migraram, também, para um outro espaço público: o cubo branco das galerias e museus. Nesse contraste, a caixa preta simboliza um modo de atenção direcionado para uma única tela, ao mesmo tempo em que desloca a história do cinema dos filmes para o seu entorno, medindo a participação do aparato cinematográfico (as paredes escuras, as poltronas, a posição do projetor) naquilo que compreendemos como a experiência do cinema. Em um sub-capítulo de Exhibiting Cinema in Contemporary Art entitulado “Black Box/White Cube”, Erika Balsom delineia os traços de ambos os lados da barra que os separa:
“O cinema é um espaço de cultura de massas associado ao entretenimento ruidoso e à eroticidade clandestina. As interações na anonimidade, a escuridão, a imensidão da tela, os ritmos imperceptíveis da cintilação que emana do projetor—todos esses elementos servem para dar suporte à potência do próprio filme, consolidando a fascinação focada e a concentração do espectador. Os protocolos da galeria são marcadamente diferentes. O nível de luz é mais alto, e o visitante pode circular à sua vontade, quem sabe até conversando com quem o acompanha. A atividade é laureada por uma impressão de respeitabilidade cultural, ou até mesmo erudição, e tende a faltar com a capacidade de absorção do cinema.”
Caixa Preta, o filme, é certamente nutrido pelas condições de exibição da sala de cinema. O uso frequente de interlúdios em tela preta, a onipresença do som (alto), e a própria projeção se implicam na criação de sentidos, e na mudança de status das próprias imagens: trata-se, primordialmente, de um filme de found footage, e, como frequentemente é o caso, parte do efeito deste gênero se dá justamente na transposição para a sala de cinema de imagens e sons que originalmente tinham outro destino (redes sociais, reportagens de TV, áudios de zap, etc).
Mas em outro respeito a Caixa Preta aqui tenciona a mobilidade flanante que Balsom associa ao cubo branco das galerias: uma caixa preta é também o nome popular de um dispositivo chamado “gravador de vôo”, que acumula os dados criados por uma aeronave depois de decolar. Se tudo corre bem, essa outra caixa preta é feita para não ser usada; no entanto, ela se torna bem valiosíssimo caso as coisas dêem errado. Se um avião cai, recuperar a caixa preta pode representar a única possibilidade de compreensão de o que ocorreu, para que então possam ser tomadas medidas para que o acidente não se repita. A leitura de uma transcrição do conteúdo de uma caixa preta é uma experiência dramática de força ímpar—por vezes, tão forte que se torna difícil de suportar. Uma vez que já sabemos como os eventos terminaram, a caixa preta revela as mecânicas do “como,” descrevendo uma sequência de acontecimentos que, desde o início, se apresenta como inevitável.
Se Caixa Preta, o filme, é também uma caixa preta, para que ela serve? Bernardo Oliveira, Saskia, e o músico Negro Leo criaram o filme como parte de um projeto artístico mais amplo chamado Ciranda do Gatilho, que talvez possa ser sintetizado como uma coleção de ruminações conjuntas sobre/na experiência do Atlântico negro em um contexto latino-americano. A caixa preta, portanto, é o documento de um desastre que é, também, um deslocamento de nome histórico sugestivo para um filme de found footage: a passagem do meio. No entanto, essa é uma caixa preta peculiar. Em vez de reconstituir o que levou ao acontecimento irreversível, ela parece gravar o que veio e vem em seguida. É, portanto, um documento de “como” esses eventos seguem ocorrendo e se atualizando como brutalidade diária, mas também de “como” as pessoas seguem escapando, driblando, transformando essa inevitabilidade: uma gravação de flight—um vôo, mas também uma fuga.
O filme é mais do que uma coleção de imagens e sons. Diferente, por exemplo, de Um Dia na Vida (2010), de Eduardo Coutinho—longa documental composto inteiramente de imagens de televisão que sofrem mínima intervenção, justamente para enfatizar o trabalho da sala de cinema sobre elas—em Caixa Preta toda matéria é dobrada, achatada, saturada a ponto de não serem mais imagens e sons, mas sim a sua lembrança, espiralando de um lugar desconhecido que alguém reconhece, a despeito de nunca ter estado lá. Esse lugar, no entanto, é o passado tanto quanto é o futuro. Nesse sentido, trata-se de um filme vertiginosamente diaspórico, no qual o sentido de origem difuso formatado pela escravidão de povos Africanos leva a uma multiplicação de presenças—“Eu sou Juçara Marçal… eu sou Sueli Carneiro… eu sou MC Carol… eu sou André Capilé”, diz a voz masculina, “eu sou o terceiro milênio”—e ao desejo não de um futuro, mas de (um) todo futuro.
O resultado se aproxima de uma mixtape, mas que reaproveita uma fita já usada vezes demais, a ponto de as canções do passado não se apagarem totalmente, e a sua versão atual acabar sendo uma interação inevitável com o que já se foi, e com o que se acabou de ser. Precariedade como adição. O fluxo polifônico criado pelo filme de certa maneira remete a Random Acts of Flyness (2018-), de Terence Nance, mas se lá a polifonia se dava na reunião de um ensamble de cineastas, Caixa Preta coleta os dejetos fulgurantes de presentes que coexistem—de Aguidavi do Jêje à irresistível gira pentecostal da Pastora Ana Lúcia ao final do filme (que nunca termina)—como interferências, como ruído. Em 1969, Aldo Tambellini fez um filme de found footage extraordinário chamado The Day Before the Moon Landing—a véspera da chegada à lua. Semelhante a Um Dia na Vida, o média reúne trechos de programação de TV no dia anterior à chegada de Neil Armostrong e Buzz Aldrin à lua. Caixa Preta parece reverter essa premissa para buscar a expressividade de um paradoxo: como seria a trajetória de uma nave espacial que nunca pousa? E o que a lua faria caso encontrasse esses documentos?
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