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Jack & Diane (2012), Bradley Rust Gray

Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.

Linguagem figurada

De toda a falada geração mumblecore – grupo de cineastas norte-americanos que começaram a fazer filmes no começo dos anos 2000 com câmeras digitais, pouco dinheiro e uma vontade enorme e nada ilegítima de versar sobre o próprio umbigo – talvez tenha sido Bradley Rust Gray quem fez o melhor filme. The Exploding Girl (2009), seu longa anterior, conseguia transformar todas as limitações do grupo em virtudes, chocando a rarefação minimalista imposta pelo formato de produção com um olho muito preciso para enquadramentos, uma nítida capacidade de controlar o tempo e um gosto cultivado de alguém que conhecia bem o melhor cinema de seu tempo. The Exploding Girl era um filme de “mestrado” – pouco era criado, mas o domínio de certa base cinematográfica e a segurança na escolha e aplicação de seus recursos por vezes chegava a pílulas preciosas. Embora um projeto mais antigo, que se arrastou por oito anos até ser feito, Jack & Diane poderia ser seu filme de doutorado, estágio seguinte para o estudante que já dominou suficientemente suas ferramentas e agora chega munido de algo particular para dizer. De certa forma, o desejo parece de fato ser esse, não fosse um problema: Jack & Diane é, em quase todos os aspectos, um pequeno desastre.

Assim como na articulação dos vários Cinemas Novos, é possível fazer paralelos entre a experiência mumblecore e manifestações semelhantes em outras partes do mundo. Há agrupamentos traçáveis, por exemplo, com o muito comentado e pouco pensado (como grupo) Novíssimo Cinema Brasileiro, ou com os novos cinemas filipino, nigeriano, português, etc. Nos EUA, porém, há um dado particular e que já havia marcado decisivamente a Nova Hollywood. Pois o cinema americano é movido pela indústria e ela é voraz em absorver rapidamente (e eventualmente neutralizar) quase tudo que surge de interessante e possivelmente rentável fora dela. No caso do mumblecore, tal absorção fica mais clara na trajetória dos irmãos Duplass, que fizeram um belo primeiro filme (Puffy Chair), um segundo exercício de gênero menos inspirado (Baghead) e logo no terceiro filme já contavam com produção assinada por Riddley Scott. Jack & Diane estaria mais próximo de Baghead, promovendo alguma interação entre a celebrada sensibilidade geracional com o cinema de horror, buscando no gênero uma possibilidade de respiro.

Os problemas do filme, porém, vão além da falta de jeito de um cineasta de verve instalativa com as convenções do gênero. Há um problema anterior, de natureza, que faz pensar em tentativas recentes do cinema brasileiro em terreno semelhante: o gênero não é algo a ser abraçado por dentro, mas um conceito frio e distante, pensado racionalmente. Tal sentimento era marcante, por exemplo, nos primeiros filmes de Juliana Rojas e Marco Dutra (estágio que já parece totalmente superado no excelente O Duplo, de Juliano Rojas), no trabalho de Felipe Bragança e Marina Meliande, ou em um curta mais recente como Os Mortos Vivos (2012), de Anita Rocha da Silveira. Assim como os cineastas brasileiros, filipinos ou portugueses em questão, Bradley Rust Gray, filho inevitável de seu tempo, é claramente cria da cinefilia. Ao longo de Jack & Diane ele não só usará a canção de maneira repetida para buscar efeito semelhante ao atingido no cinema de Wong Kar-wai – lembremos do uso de “California Dreaming” em Amores Expressos (1994) – como deixará a filiação explícita escolhendo como tema “Only You”, dos Flying Pickets, que fecha Anjos Caídos (1995). Assim como The Exploding Girl regurgitava o cinema de Hou Hsiao-hsien, o horror como manifestação física do desejo em Jack & Diane remete imediatamente a Trouble Every Day (2001), de Claire Denis. Ele surge justamente nas manifestações físicas de duas personagens normalmente apáticas e anestesiadas – como boa parte das protagonistas dos filmes do mumblecore, padecendo da epidemia do conforto. Jack & Diane começa com um ataque de monstro, mas não será necessário muito tempo para percebermos que o monstro não é um monstro, de fato.

Por outro lado, existe, no cinema, monstro que seja realmente monstro? Claire Denis também usava o gênero como forma de alegoria, de dizer algo pelas entrelinhas, e ainda assim fazia um grande filme com essa intenção. Com justiça, o desejo das entrelinhas é uma característica do melhor cinema de gênero, de Jacques Tourneur a Bryan Bertino, passando por George Romero, John Carpenter e cia. Mas assim como esse cinema é marcado pela habilidade alegórica, seu compromisso final é e sempre foi com o monstro, com a ferramenta de gênero que, para ser efetiva, precisa ser usada como fim, não como mediação. É claro que o canibalismo em Trouble Every Day tem sentido metafórico, mas quando uma mulher arranca com os dentes a bochecha de um pobre coitado, o compromisso é com a mordida, com a carne sendo rasgada, com o sangue que jorra de maneira espetacular. Jack & Diane é um filme sobre duas meninas apaixonadas, mas os arroubos de horror aqui são apenas e somente linguagem figurada. Lição a se tomar com John Carpenter: o horror só é horror de fato se afirmado como algo concreto.

O que torna tudo mais estranho é que Jack & Diane tampouco funciona como um filme de amor. Talvez aqui, como em Baghead, a ruína do filme está justamente por seu compromisso ser apenas com a (meta)linguagem, com seus próprios joguetes que deixam de ser recursos de construção e se tornam fim, do qual o gênero é apenas parte. Isso parece ainda mais despropositado por Jack & Diane ser um filme norte-americano. Pois se no Brasil a aproximação irônica/calculada com o gênero muitas vezes parece ser a única saída possível (o que faz de um filme como O Duplo uma raridade) – justamente por o Brasil ser um país que desconhece o classicismo – os EUA sempre foram a filmografia da prefiguração, dos paradigmas… dos clássicos. O que fazia a Nova Hollywood ser tão bem sucedida não era exatamente sua capacidade de incorporar as invenções, descobertas e rupturas, mas principalmente sua invejável habilidade em torná-las novamente operativas, prefigurativas, paradigmáticas.

Estranhos são os tempos em o colonialismo se torna tão difuso, tão difuso, que o colonizador passa a absorver até mesmo as limitações dos colonizados – limitações que em nossa realidade se tornam possibilidade de estilo, mas que fazem pouco sentido em um lugar (o cinema de gênero) onde o estilo é questão de sobrevivência. Jack & Diane é um filme perdido em intenções que, aparentemente tão mais amplas que os domínios de seu diretor, na verdade são ínfimas, quase insignificantes. Passadas todas as pautas, as generalizações grosseiras que erigiam carreiras e derrubavam obras a cada nova manchete no jornal que mencionava o termo mumblecore, o filme de Bradley Rust Gray sofre do mesmo mal do qual padeciam diversos personagens desse conjunto de filmes incensado e criticado quase sempre por motivos injustos: não saber bem o que fazer da vida a não ser inflar o seu próprio vazio.

1 thought on “Jack & Diane (2012), Bradley Rust Gray”

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