Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2012.
Farsa de classe média
Em Chamada a Cobrar – versão de longa-metragem do telefilme Para Aceitá-la, Continue na Linha (2010), feito para a TV Cultura – Anna Muylaert parte de uma situação bastante familiar para qualquer brasileiro hoje: Clarinha (Bete Dorgam), uma senhora de classe média de São Paulo, recebe uma ligação a cobrar que diz ter acontecido algo a uma de suas filhas. É imediatamente claro que se trata de um falso sequestro que, o título anuncia, virá lhe cobrar determinadas posturas. Parece natural que a bola levantada neste prólogo seja mantida no ar por uma provação brutal à qual a personagem seria submetida, a partir da manipulação da expectativa do espectador por meio das convenções do cinema do gênero. Chamada a Cobrar de fato largará mão de um punhado delas, jogando cada vez mais pedras na protagonista – como mandam os velhos manuais de roteiro – com direito a montagem paralela, last minute rescue e todo tipo de artimanha que a linguagem possa comprar. Ao conforto da classe média pode faltar tudo, menos a ilusão de que o dinheiro não tem fim.
Ainda no prólogo, Anna Muylaert acentua, a cada nova fala dos homens do outro lado da linha, que não se trata apenas de um falso sequestro: é um falso sequestro terrivelmente mal feito. Clarinha entrega todas as informações necessárias aos contraventores, colocando e apertando sozinha a corda em volta do próprio pescoço. O momento de desespero sobre o qual se funda o golpe é substituído por uma impressão que se aprofunda com cada linha de diálogo e acentuação na inflexão da atriz: Clarinha é uma besta. Uma besta solitária e triste – mais tarde saberemos – cheia de nobres razões e um coração soterrado em voluntária ingenuidade. Afinal, ela é mãe de família – embora suas filhas, já crescidas e auto-envolvidas o suficiente para esquecê-la, não dêem mais a mínima para ela. Ainda assim, Clarinha é o tempo todo apresentada como uma besta, e sua burrice – pois a ingenuidade voluntária é tão somente a burrice – é tamanha que é como se ela merecesse toda a purgação que será obrigada a passar em seguida.
Mas de que natureza é essa purgação? Em crítica escrita nesta mesma cobertura a Jack & Diane, de Bradley Rust Gray, escrevi sobre a dificuldade das cinematografias periféricas em trabalhar com o cinema de gênero sem transformá-lo em algo distante, intelectual, abstrato. Poucos dias depois, vi o retrato mais cabal desse sentimento: A Última Vez que Vi Macau, filme de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata todo fundado na impossibilidade de tirar o gênero (no caso, o noir) do fora de quadro. Chamada a Cobrar não foge desta condição, e aqui o encontro das convenções com a burrice de Clarinha – aprofundada a cada sequência, amarrando-lhe aos pés trinta pares de tênis, um carregador de celular superfaturado e duas dúzias de bicho de pelúcia, para ver se o corpo afunda mais rápido até o lodo que se esconde sob o r(R)io – almejam um lugar ainda mais cretino: Chamada a Cobrar é, também, uma farsa.
Pois todas as suas convenções estão aqui também para enganar o espectador, como os bandidos seguem enganando Clarinha a cada nova regra sem pé ou cabeça. A montagem paralela, o telefone sem bateria, o last minute rescue… toda convenção em Chamada a Cobrar está servindo a um suspense que não existe, pois desde o princípio nos é reservado um lugar seguro e distante, do qual podemos rir de Clarinha e saber que, no fundo, não somos como ela. O esforço para tirar o peso dessa situação está justamente na transformação das pedras que são jogadas nela em símbolos tão cotidianos e inofensivos quanto trinta pares de tênis, um carregador de celular superfaturado e duas dúzias de bichos de pelúcia. Afinal, até os bandidos aqui cometem um falso crime. Não há motivo para sofrermos por Clarinha, pois no fim das contas sabemos que esse drama sem peso será para o bem dela, que se reaproximará das filhas e chegará a encontrar no desgraçado do outro lado da linha uma espécie de psiquiatra do cotidiano – que, diga-se de passagem, cobra um preço bem camarada.
Se parte da estratégia dos falsos bandidos é transformar uma farsa em drama, Chamada a Cobrar se esforça em transformar seu drama também em farsa. Pode parecer irônico que esta transmaterialização aqui pareça aviltante se, dias atrás, escrevia das maravilhas do cinema de contrabando de Wes Anderson, capaz de fingir que “cocaína é açúcar”. A diferença é que, em Moonrise Kingdom, tal inversão visa a desestabilização, a reorganização do sensível de quem está ali, sentado na poltrona do cinema. Em Chamada a Cobrar, a inversão é apaziguadora, sublinhada pela nossa velha cordialidade que não acredita em finais que não sejam felizes. Acrescentar uma polaridade invertida apenas uma outra forma de neutralizar as diferenças. -1 com +1 = O.
A Clarinha, resta uma jornada de engrandecimento, com todos os percalços e descobertas dignas dos grandes heróis, com final na praia e tudo mais. Mas será Clarinha realmente nosso protótipo possível de herói, chamada da inação por acidente, vivendo ao sabor de sua própria tapadice, ciente que uma mão pesada lhe reservará um final feliz no fim dessa imprevista estrada cheia de pedágios? Ao final de Chamada a Cobrar, ficamos esperando pelo plano que coroaria essa cretinice, mas que nunca vem: Clarinha agradecendo aos bandidos por tudo que eles fizeram por ela. Tal materialização seria mais justa, ao menos mais clara em suas intenções… mas a clareza é a armadilha da farsa, e pela farsa Chamada a Cobrar lutará até o fim, se esforçando por arrebentar a linha de um telefone sem fio, sabendo que quem paga a conta é quem está do outro lado.