Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
O entusiasmo como resistência
Entre os títulos em competição neste Festival de Brasília, tivemos um belíssimo filme (Doméstica, de Gabriel Mascaro), algumas fortes demonstrações de assombro (Eles Voltam, Elena e, em outro grau, Noites de Reis e A Memória que me Contam) e momentos interessantes em praticamente tudo que se viu. Mas Esse Amor Que Nos Consome, filme de Allan Ribeiro quase tão forte quanto o de Gabriel Mascaro, é marcado por uma característica única neste festival – e cada vez mais rara no cinema brasileiro: é um filme alegre. Essa alegria – que vemos também em um filme como O Homem Que Não Dormia (2011), de Edgard Navarro e mais alguns raros títulos nos últimos anos –, porém, não é paliativo débil que justifica a imobilidade, como em Era Uma Vez Eu, Verônica. Ao contrário, o longa de estréia de Allan Ribeiro é atravessado por questões concretas que se impõem na política cotidiana em uma cidade como o Rio de Janeiro. A alegria, aqui, é menos uma idéia abstrata e mais um entusiasmo, uma forma de interferir ativa e frontalmente na cidade e na vida cotidiana.
A especulação imobiliária se tornou uma questão chave para o cinema brasileiro contemporâneo, em especial o pernambucano. Um Lugar ao Sol (2009), Recife Frio (2009), Menino Aranha (2008), Praça Walt Disney (2011), Balança Mas Não Cai (2012), Caixa de Pandora (2012), Avenida Brasília Formosa (2010), HU (2011) … são todos filmes recentes que versam sobre a estruturação do espaço urbano dentro de uma perspectiva político-arquitetônica. Ainda assim, esse incômodo raramente parecia chegar ao X da questão. Por mais que as sombras das torres feias projetadas sobre a praia do Recife ou os prédios esvaziados em Belo Horizonte ou na Ilha do Governador fizessem uma radiografia de problemas concretos, a maior parte desses filmes se dividia em três espécies de abstração: a não-compactuação pela sátira ou pelo panfleto (traços especialmente comuns nos filmes pernambucanos), o isolamento do espaço como conceito (HU) ou a projeção fantasmagórica desses vazios em decadência (a vertente mineira). Mesmo a interferência direta deste novo projeto urbano no sol da praia de Boa Viagem, por exemplo, se dava pela sombra, pela projeção, pelo que não é o prédio. Um cinema de consequências, nunca de causas. Em todos os casos, o espaço se tornava um dado frio, simbólico e externo à vida cotidiana a não ser como reflexo, como sintoma.
Esse Amor Que Nos Consome parte de uma política muito mais ativa e concreta: é preciso ocupar os espaços, transformar essa cidade que definha em algo vivo, útil, pulsante. A companhia de dança de Rubens Barbot, e seu diretor Gatto Larsen (personagens de Ensaio de Cinema, belo curta feito pelo diretor), se muda para um casarão abandonado no Centro do Rio. Eles têm permissão para ficar ali até que o imóvel seja vendido, pelo preço de um milhão de reais. Ao longo do filme, compradores visitam a casa diversas vezes. O que mais se anima com o espaço pretende convertê-lo em sede de um partido político. Mas Barbot e sua companhia tem uma força extra: os deuses estão ao seu lado. Logo no primeiro plano, os búzios dizem a Barbot que fique tranquilo, pois ninguém comprará o sobrado. Em todas as visitas, um Exú diligente se coloca à porta, como ferramenta que, a cada tragada do charuto, garante que o Justo será feito.
O projeto de Esse Amor Que Nos Consome só é defendido pelos deuses por ser um projeto que deseja a arte, deseja o Belo (e lembremos que o Belo e o Justo são sinônimos frequentes nas traduções da filosofia grega, cujos deuses se aparentam com os orixás) e que pensa a cidade como um lugar produtivo, mesmo quando lida com um passado aparentemente definhante. Pois se o Rio é uma cidade em transformação, esse “novo Rio” só faz sentido se não excluir os espíritos impressos nessas paredes, os orixás que habitam esses espaços, os bêbados e as aposentadas que matam tempo nas praças, as imposições cotidianas e a possibilidade de subvertê-las. A cidade é tudo isso, e o projeto (e não a utopia) do filme embarca todas essas dimensões.
Essa intervenção, porém, não é somente discursiva, narrativa. Allan Ribeiro constrói a relação dos corpos com o espaço de maneira bastante inteligente: dentro do sobrado, os plongées e os planos frontais chapam a composição, como se aquele grupo de resistentes estivesse pressionado em um canto decadente da cidade. É uma estratégia simples, mas que causa tanto efeito quanto o som das escavadeiras que age sobre os limites do quadro em No Quarto da Vanda (2000), de Pedro Costa. Por outro lado, quando vai para o exterior, a relação é diferente: os corpos se expandem, tomando a cidade de maneira prática nas várias caminhadas pelas quais Barbot e Gatto Larsen costuram o tecido da cidade, ou poética, nos números de dança que se espalham pela paisagem.
O espírito dessa ocupação é resumido na mais bela sequência de ensaio do filme, em que os dançarinos da companhia usam agulhas e linhas invisíveis para tecer uma colcha de retalhos já pronta, reagindo aos braços rijos que se movem feito os ponteiros de um relógio. No mais recente editorial da Cinética, falava que “ao cinema brasileiro de hoje cabe a lembrança de que a arte talvez seja o lugar mais propício para a proposição de um outro mundo e a manifestação do não-contentamento com o mundo que já existe”. As agulhas e linhas que não existem – ou seja, a arte – estão ali apenas reafirmando o gesto simbólico da costura, reconectando as diferentes roupas que já coabitam em um mesmo mapa multicolorido, plural e concreto. Esse Amor que nos Consome é a reafirmação dos retalhos de uma mesma cidade-tecido que os projetos de futuro se esforçam por separar.
Pingback: Caeser Must Die (Cesare Deve Morire, 2012), Paolo & Vittorio Taviani - FABIO ANDRADE
Pingback: Com Violência: Cinema como Produção de Consenso - FABIO ANDRADE