Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
Era uma vez
Se O Céu de Suely (2006), de Karim Aïnouz, supostamente inaugurava no cinema brasileiro uma cadeia de produção de feelgood pronta a alimentar uma sensibilidade contemporânea sedenta por sedação, Era Uma Vez Eu, Verônica é o paroxismo desse projeto. Apesar de todos os seus limites, o filme de Karim Aïnouz era ainda marcado por duas coisas bastante flagrantes: a existência de cenas que constituíam uma história reconhecível (diria que até de maneira excessivamente didática) e a presença magnética de Hermila Guedes. É sintomático que, tão poucos anos depois, o desejo de contar uma história não seja mais que um título e a atriz que fez Suely volte como Verônica. Por mais que seu rosto continue servindo bem às curvas da objetiva, toda sua potência se diluiu nessa sensibilidade onanista que só quer se querer bem, negando passado ou futuro para poder passar o presente em falas moles que repete para si mesma, e que a impedem de realmente dizer alguma coisa.
E, assim como Verônica é uma personagem sem vida, Verônica é um filme sem filme; sobraram apenas momentos com cara “de cinema” (de arte), com sentidos plenamente decodificáveis capazes de camuflar uma história mal contada nas brechas da montagem, evitando interpelar o prazer de sua própria apatia. Como todo “era uma vez…” pressupõe um encadeamento minimamente lógico dos acontecimentos – mesmo que seja por uma chave fantástica, fabular – é surpreendente constatar que não há nada em Verônica que seja fundamento de uma narrativa possível. Qualquer esboço de arco dramático demonstrável – ou seja, decupável em ações no espaço e no tempo – é desmontado por um sistema de elipses que, de tanto se esforçar para esconder tudo aquilo que não se consegue resolver, só faz chamar atenção para a gratuidade das causas e consequências que levam a protagonista de um ponto a outro. Essa gratuidade, porém, não é sistemática para se configurar como o registro do filme. Ao contrário, sua contraposição a um desenrolar supostamente naturalista faz com que o conto de fadas também expresso no título seja apenas um agraciamento do diretor para com uma personagem que, ao contrário do porteiro em A Última Gargalhada (1924), não impõe tratamento de exceção. Era Uma Vez Eu, Verônica não tem qualquer estrutura, mas hoje isso já não parece mais ser um defeito; basta ter uma aparência de estrutura (uma orgia dublada no começo e no fim, um problema para enfrentar – mas, em época tão satisfeita com sua impotência, melhor que seja um problema sem solução), e deixemos que as elipses e o voice over se encarreguem de fingir que tudo isso é um arco dramático.
Por muito tempo, a crítica que fazia diferença se ocupou em apontar a defasagem dos cineastas brasileiros ao que era feito de mais interessante no resto do mundo. Por acaso ou consequência, os cineastas fizeram a lição de casa e esta mesma crítica passou a lidar com outro problema: o excesso de cinefilia no cinema brasileiro. Era Uma Vez, Verônica tem os enquadramentos de hospital, a médica que quer ser cantora e até a lambaeróbica de Síndromes e um Século (2007). Tem também o apartamento cheio de infiltrações como espelhamento do corpo (físico e espiritual) doente que lembra Tsai Ming-liang, uma encenação diegética de namoro tirada de Amor à Flor da Pele (2000), e o gosto pela canção e pela luminosidade dos espaços populares do cinema de Claire Denis. Os sintomas são flagrantes, mas há erro no diagnóstico. Parafraseando João Ricardo Moderno, em sua Estética da Contradição, “O artista é tomado pela Ideia, não pelo conceito. A busca do efeito enquanto motivo racional de obtenção do sucesso na cópia dos grandes artistas é a busca do conceito, a redução dos resultados dos mestres a um modelo conceitual efeitista a ser atingido pela ação dos reducionismos da abstração. Imitam o efeito e com isso destroem-no”. Mais uma vez, todos os signos vêm com a polaridade trocada, pois estamos diante de um cinema que muito vê e pouco entende. Mais importante do que ir à Ideia, é simplesmente gerar o reconhecimento do efeito. Importa menos o que nós vemos, e mais o tipo de coisa que parecemos estar vendo, pois são estes tipos que nos definem socialmente. Nada disso é excesso ou falta de cinefilia ou de contemporaneidade; é apenas a adoção da aparência como se ela fosse dotada de significado, dos procedimentos como bálsamo dos efeitos.
É sintomático que, no recente Festival de Brasília do qual saiu vencedor, cinco dos seis filmes de ficção em competição tivessem imagens quase idênticas de corpos femininos boiando em grandes concentrações de água natural (mar, lago, rio, etc). Vivemos uma era de totalitarismo de uma sensibilidade específica, aguçada apenas o suficiente para detectar os problemas (a desconexão das mulheres com sua própria interioridade) e acomodada o suficiente para buscar solução sempre nas mesmas imagens, da mesma maneira. Boiando na água, sendo levado por cada pequena onda, o corpo troca a ação no mundo pela impressão de um contato com seu interior. O problema não é a imagem, pois as imagens sempre estiveram aí, mas o automatismo dentro de um nicho de autor que se nega a olhar para aquilo que o bom cinema industrial norte-americano sempre teve como maior encanto: a criatividade de suas soluções. Aqui, não há “era uma vez” que não termine em um “eu”, mas este “eu”, de tão ingênuo em seu orgulho em primeira pessoa do singular, não percebe que está apenas a reproduzir padrões subterrâneos determinados pelos outros. E que o mar em que se bóia… bom, o mar é mar, é água, é sal, é concreto.
Era Uma Vez Eu, Verônica é o paroxismo desse corpo que bóia, pois toda imagem aqui vem dotada dessa mesma sensibilidade, dessa lógica do efeito e do espetáculo. Dessa doença que torna tudo fabular, não há filme possível. Ficam apenas alguns momentos de intimidade aqui e ali, uns velhos bêbados a dormir sobre a mesa da sala (em um dos momentos genuinamente fortes do filme), a lembrança de identificação em um show de Karina Buhr e uma pilha de discos de vinil empoeirados que hão de sobreviver ao seu próprio dono. Marcelo Gomes, diretor que parecia promissor em Cinemas, Aspirinias e Urubus (filme que demanda revisão urgente), empalidecido ao lado de Karim Aïnouz em Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (2009), chega em Era Uma Vez Eu, Verônica cheio de bons sentimentos, mas sem ter muita idéia de o que fazer. E, nesta desorientação, Suely trocou novamente de nome e se convenceu que é feliz o suficiente para não se dar mais sequer a chance de ir embora.