Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Faz de conta
Não há dúvidas que o nome de Apichatpong Weerasethakul será mencionado, mais a torto do que a direito, sempre que se ouvir falar em A Alegria. Não é por menos: além de incluírem o realizador tailandês em seus agradecimentos especiais nos créditos finais do filme, os diretores criam cenas à beira do rio que fazem lembrar as de Blissfully Yours, embrenham-se em uma floresta à Mal dos Trópicos (2004), e ainda enchem o filme de travellings acompanhados de drone music que resgatam uma das principais marcas de estilo de Apichatpong. Da mesma maneira, A Alegria traz também referências mais discretas a M. Night Shyamalan (há cenas que lembram A Dama na Água e um monstro marinho que fala a mesma língua do ET de Sinais) e Tsai Ming-liang (a jaca é filmada como um equivalente brasileiro das comidas exóticas que vemos em Goodbye Dragon-Inn e O Sabor da Melancia, por exemplo).
O problema nessas três matrizes está justamente na tentativa de conciliação do inconciliável: Shyamalan e Tsai Ming-liang são cineastas de representação clássica, praticando exatamente a organização artística que Apichatpong Weerasethakul abole em seus filmes, na justa atitude que os torna tão originais. Filmes como Sinais (2002) ou O Sabor da Melancia (2005) são sistemas simbólicos fechados, mais herméticos no caso de Tsai (mas que se abre facilmente uma vez que o espectador percebe o que cada objeto de cena simboliza dentro desse sistema), mas igualmente sistemáticos em Shyamalan (lembremos como as peças se encaixam ao final de Sinais, e como cada elemento narrativo tem função precisa para se chegar ao desfecho). Em Síndromes e um Século (2007), ou qualquer outro filme de Apichatpong, temos o exato reverso: os signos não se atrelam a significados específicos, transformando-se dentro de uma mesma cena e criando um sistema simbólico sempre fluido, mais calcado na relação entre os signos do que na articulação dos significados.
Que Felipe Bragança e Marina Meliande misturem referências de procedimentos antagônicos é menos um problema em si, e mais um sintoma das fragilidades de A Alegria: há pretensão de profundidade em uma adesão que é, no fundo, puramente superficial. Trocam-se monges budistas por bate-bolas, melancias por jacas, tigres por monstros marinhos, mas não se leva das matrizes o que elas têm de significativo por trás da aparência. Apichatpong é resgatado somente por sua estranheza, mas em A Alegria ela é reduzida ao quirky, sem qualquer traço de desestabilização ou violência.
Pois se há algo de realmente extraordinário no cinema de Apichatpong Weerasethakul é a maneira como ele usa esses mesmos signos para dar cabo a processos muito mais profundos: não só filmar uma transformação de homem em tigre, mas promover essa mesma mudança na própria forma do filme, na maneira como um signo reaparece completamente re-significado em pontos diferentes de uma mesma história, e de que uma perna protética passa a ser um lugar para se guardar uma garrafa de bebida, sem nunca deixar de ser uma prótese. Uma história de amor pode se tornar uma história de horror; um bucólico conto religioso se transforma em ficção científica; um boy meets girl à beira do rio se revela uma jornada sensorial, filmando o tato infilmável, o toque e sua consequência. Em A Alegria, a relação com o cinema de Apichatpong Weerasethakul é ironicamente iconográfica; irônica justamente por se tratar de um diretor que rechaça fortemente a estaticidade que transforma os signos em ícones. Tudo é fluido no cinema de Apichatpong; não há citação possível. A Alegria, porém, se quer primo-próximo de Mal dos Trópicos, mas também filme de super-heróis, o mais iconográfico dos gêneros.
Mas não é pelas citações a Apichatpong Weerasethakul – voluntárias dentro do filme e que confundirão os olhares mais superficiais – soarem equivocadas que A Alegria é um filme problemático. É apenas necessário afirmar o que ele não é, embora faça parecer ser, para se chegar ao filme com os olhos limpos das filiações cinéfilas apressadas. A Alegria leva adiante o mesmo olhar dedicado ao universo adolescente no coletivo Desassossego (2009), apresentando diversos dos mesmos problemas, e algumas virtudes que o superam. Os traços de estilo permanecem – o mesmo gosto pelo jogo de palavras; as atuações posadas; o trabalho de reapropriação de gênero; o encontro do cotidiano com a possibilidade de extravasá-lo no fantástico – e são ostentados de forma a gerar todo tipo de implicância. A implicância, porém, interessa muito pouco como crítica.
Felipe Bragança e Marina Meliande aprofundam seu mergulho em um imaginário afetivo carioca bastante conectado à sensibilidade de parte do Rio de Janeiro (cidade na qual o filme é situado literal e imageticamente), com sua latência rosada, sua fala mansa sua eterna vontade de potência. A questão é menos a de se acreditar ou não nesse mergulho, e mais de questionar o próprio impulso: quando não há possibilidade de violência, é possível haver arte? Os jovens de A Alegria sorriem, mas não riem; sangram, mas não se machucam; dançam sempre de olhos abertos; falam baixinho e sem qualquer modulação, amando e odiando como zumbis. O que falta, porém, é justamente a distância crítica do gesto artístico: A Alegria não se permite irromper em berros, como A Fuga da Mulher-Gorila (2009). O filme se irmana aos personagens não pelo afeto, mas pela impotência. Como em Desassossego, a violência é encenada, acontece diante da câmera (gesto clássico para um filme de referência moderna), mas nunca contamina o filme em sua relação com o espectador. E se não há violência possível, resta à arte girar em torno de sua própria construção e, como a protagonista do filme, descobrir que é capaz de atravessar paredes para ao fim não sair de seu próprio quarteirão, como se a potência tivesse serventia descolada do gesto.
A Alegria se perde muito nessa monotonia voluntária em nome de sua própria poesia. Há momentos, porém, em que o filme toma rumos um tanto inesperados e ganha vida considerável. Em um deles – sem dúvida a melhor cena do filme – os alunos de uma mesma turma de colégio se unem após a protagonista ser repreendida por usar o celular em aula, e criam um leve motim imitando com a boca o barulho de celulares vibrando. Embora esteja em pleno acordo com o espírito do filme, a afronta silenciosa ganha força pelo movimento lento da câmera e uma decupagem precisa que cria o suspense a partir do nada. A solução visual é mais eloquente do que toda a vontade poética do filme, e ali, no não-literal, encontra um momento de real força cinematográfica.
Além disso, há também planos iluminados por dois atores experientes e inteligentes o suficiente para quebrar essa monotonia de encenação com inflexões e sutilezas verbais e corporais: Márcio Vito e Maria Gladys. Sempre que vemos um dos dois atores em cena, o filme parece recuperar pulsação, talvez pela simples presença de espíritos inquietos em meio a tanta quietude. Não deixa de ser irônico que um filme sobre o poder juvenil e que deseja se filiar ao que de mais moderno é feito no cinema hoje só pareça sair do lugar quando dois atores mais experientes entram em cena, ou quando a flutuação no presente é potencializada por uma decupagem mais clássica. Irônico, mas não sem sentido: quando escrevi sobre A Fuga da Mulher-Gorila, o texto era encerrado dizendo que o filme encarava um vazio e tentava lhe preencher com o coração que lhe era original. Temos aí uma definição possível de arte clássica. A Alegria tem arroubos dessa força material em meio às afirmações pouco frutíferas dos encantos e dos limites de seu próprio quarto (e lembremos que a palavra mais importante no título do belo romance curto Viagem ao Redor do Meu Quarto, de Xavier de Maistre, não é “quarto”, mas sim “viagem”). São momentos em que a citação é deixada de lado e a vontade de filiação é dispensada para que a relação com influências se dê na única esfera cabível: Shyamalan é retomado pela precisão dos tempos, dos cortes, da colocação da câmera – elementos que, conjugados, constroem uma experiência viva, tensa e confrontadora. Uma experiência, enfim, cinematográfica.
Pingback: Take This Waltz (2011), Sarah Polley - FABIO ANDRADE
Pingback: Restless (2011), Gus Van Sant - FABIO ANDRADE
Pingback: Cachoeira (2010), Sérgio Andrade; Fábula das Três Avós (2010), Daniel Turini - FABIO ANDRADE
Pingback: Angeli Night and Day (Angeli 24 Horas, 2010), Beth Formaggini; The Inside (Contagem, 2010), Gabriel Martins e Maurilio Martins - FABIO ANDRADE
Pingback: The Vulgar Hours (As Horas Vulgares, 2011), Rodrigo de Oliveira & Vitor Graize - FABIO ANDRADE