Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2012.
A era da conciliação
Lá se vão oito anos que Closer (2004), de Mike Nichols, definiu – de maneira ao mesmo tempo precisa e nefasta – o regime de relacionamentos amorosos deste princípio de século, com seus casais que muito falavam e pouco faziam. Em Closer, essa verborragia insuportável ganhava grifo psicanalista na manifestação verbal do desejo sexual – desejo, inclusive, não tão distante assim do que marcava outros filmes mais ou menos contemporâneos, como A Professora de Piano (2001), de Michael Haneke. O século XXI se anunciava como um novo regime sensível, mas naquele momento ele ainda carregava nas costas o esqueleto de um divã do século XIX.
Ao mesmo tempo, se as personagens e o filme de Mike Nichols torravam a paciência, ao menos toda aquela torrente de palavras ainda servia para esconder (e, com isso, manifestar) alguma coisa – uma ponta de desejo de vida que, mesmo a milênios de distância de um Trouble Every Day (2001), pulsava, ainda que timidamente. De lá pra cá, os telefones celulares se esparramaram e o contato parece ter sido reduzido a uma epidemia da palavra, exclusivamente. Em um filme como Apenas o Fim (2008), do carioca Matheus Souza, tínhamos a cristalização do relacionamento contemporâneo como um duelo verbal, um jogo de controle, de submissão do outro aos sofismas da cultura pop. Pegar na mão é coisa do passado; o presente é feito à distância, com o maior número possível de obstáculos que impeçam um corpo de encostar no outro. A fala incessante das personagens de Closer parecia ainda mais insuportável em sua versão higienizada pelo pilotis da PUC, quatro anos depois. Mas os tempos mudam cada vez mais rápido, e Entre o Amor e a Paixão, novo filme de Sarah Polley, já nasce em um contexto que, mesmo decorrente, é bastante diferente daquele ano “distante” de 2008. Os celulares deixaram de servir à fala, trazendo para a ponta dos dedos a sensibilidade generalizada, compartilhada com igual entusiasmo por pessoas completamente diferentes, reunidas na indistinção de uma timeline comum do Facebook.
Se Closer e Apenas o Fim traziam ainda certo desejo de submissão, de dominação dentro de um relacionamento a dois (e o desejo de poder é, ao menos, ainda um desejo), as personagens de Entre o Amor e Paixão vivem bem, de maneira equilibrada e saudável. Sarah Polley tem clara consciência de que a dramaturgia tradicional se alimenta de crise, pois só a crise permite o turning point que o espectador cotidiano espera ver quando se tranca em um cinema… mas a afirmação mais contundente deste seu novo filme é de que, entre os jovens brancos e de classe média alta nesta segunda década de século, mesmo as crises são afetuosas, generosas, equilibradas. Vivemos o estado mais agudo e avançado de uma síndrome da conciliação. É neste “redemoinho” que conhecemos Margot, personagem “adorável” interpretada por Michelle Williams, com quem estaremos amarrados até o final do filme (e pararei por aqui com as aspas, sem apagá-las, como testemunho de que sou também filho inevitável deste mesmo momento histórico, tão debitário da sensibilidade de Instagram que colore cada imagem do filme, com baladas folk em tom maior quanto as pessoas que tanto me aborrecem lá, na tela do cinema). Como produto exemplar de seu tempo, podemos acusar Entre o Amor e a Paixão de tudo, menos de falta de consciência de seus gestos.
Desde o começo, tudo é dado com uma clareza irrevogável: após um breve prólogo (a ser retomado, por texto e espectadores, mais à frente), acompanhamos Margot com seu caderninho de notas, entre turistas com câmeras em punho, em um breve tour por uma espécie de parque temático da idade média. Ela vê a reencenação de uma cena de casamento (pista número 1) e depois é intimada a participar de um ritual de humilhação pública (pista número 2), chicoteando, sem asco ou crueldade, um ator que se passa por public offender. Com caderno em mãos, Margot talvez só se destaque dos turistas ao seu redor pelo tom vintage que papel e caneta trazem em uma era tão midiatizada… ainda assim, a relação é a mesma: viver as experiências não mais pela experiência, mas sim pela possibilidade de relatá-las em seguida. E, se possível, ganhar um dinheiro com isso. Margot é uma turista profissional, mas ainda assim uma turista. A adequação completa à sensibilidade generalizada de sua época lhe garante uma vaga na assessoria de imprensa na empresa que gere os parques do Canadá, e ali, naquela mistura desavergonhada e inevitável entre trabalho e lazer, entre encenação e vida, entre o colorido das casas de Hopper que povoam o fundo de tela em todo o filme e o estampadinho miúdo dos aventais de cozinha, Margot se apaixona por um falastrão exibido que debocha – de maneira cordial e nada agressiva… efetivamente como um flerte – de sua participação naquela cena.
A clareza é acachapante. Pois as personagens de Entre o Amor e a Paixão se distinguem justamente por esta nova volta que dão nas personagens de Closer ou Apenas o Fim: não se trata mais de falar em vez de fazer, mas sim de falar sobre o fazer. Margot buscará esse affair fora de seu casamento, mas o limite do adultério é o da crença em sua própria ficção. Neste sentido, uma das cenas mais emblemáticas do filme é quase uma recriação do famoso falso orgasmo de Meg Ryan em Harry & Sally (1989), de Rob Reiner… mas, desta vez, o prazer vem não da simulação do orgasmo, mas de um verdadeiro discurso sobre o método, um relato de como seria o contato físico entre os dois se ele pudesse acontecer. É o triunfo cotidiano da metalinguagem, só que, aqui, ela – que recentemente tem rendido filmes tão fortes quanto Pânico 4 (2011), de Wes Craven, e Para Roma com Amor (2012), de Woody Allen – esvazia o poder da vida como a permanente encenação prometida pelos punks, na Nova York da segunda metade da década de 1970, expondo as armações de sua própria ficção. Se no filme de Woody Allen, ou no Cosmópolis (2012), de David Cronenberg, a metalinguagem ganha uma eloquência straubiana (logo, deixa de ser meta e se torna linguagem) –, quando diluída na vida de maneira tão onipresente e sincera quanto em Entre o Amor e a Paixão, o efeito é reverso: expor a armação da vida como auto-ficção é impossibilitá-la por completo. Margot não tem medo de avião; tem medo de ter medo de perder o vôo.
Os jovens, enfim, precisam morrer de alguma coisa. Na ausência da crença, da política, da ideologia – palavras que hoje trazem um perfume demodé – resta cometer suicídio em ficção, anulando a própria vida na consciência de um papel. Se manifestações desta mesma malaise podem ser percebidas em filmes brasileiros recentes como A Alegria (2010), de Felipe Bragança e Marina Meliande; Era Uma Vez Eu, Verônica (2012), de Marcelo Gomes; e Elena (2012), de Petra Costa, é porque o regime sensível dominante no mundo hoje é mesmo o diagnosticado por Giorgio Agamben em seu Profanações: vivemos a impossibilidade de profanar. Nesse sentido, é sintomático que Entre o Amor e a Paixão tenha uma demorada cena de vestiário, em que várias atrizes de todas as idades e tipos físicos imagináveis aparecem em nu frontal, e que a única coisa que gere reação na cena seja a insistência da montagem em ficar tanto tempo por ali. Pois se o século XX foi a era dos extremos, o XXI se encaminha como a da conciliação cotidiana desses extremos. E quando mesmo o mais doce desenho infantil é violado por dentro até jorrar um chafariz de sangue, o que resta – o filme parece nos dizer – é somente a possibilidade do comentário, de se fazer uma festa para comemorar a sobriedade de uma parente regada a litros de álcool, como promessa de uma tirada cool e soberana no discurso de agradecimento da alcoólatra. O que resta é o cinismo.
Entre o Amor e a Paixão ainda traz uma nova dobra nesse cinismo. Pois se todo o discurso sobre o método leva Margot a sair de casa e do casamento – uma pessoa pode até adorar frango, mas não comerá frango todo dia, ela diz – e vá viver seu novo amor, há duas cenas nesse esperado turning point que são emblemáticas da atitude do filme diante do porvir. A primeira é, na verdade, uma elipse, o término de casamento nunca filmado, relegado a uma pequena coleção de reações de seu já ex-marido (Seth Rogen, em péssimo momento), como um vídeo de casting. A segunda é o grande momento dó de peito do filme, em que todo o relacionamento de fato com Daniel (Luke Kirby) se passa em um falso plano-sequência circular – que rima com uma cena em um parque de diversões, em outro momento do filme – em que uma sucessão de cenas de sexo (a dois, no chão; a dois, no colchão; a três, com outra mulher; a três, com outro homem, e por aí vai) mina em poucos segundos todas as fagulhas daquele primeiro interesse do casal, até terminar em uma cena tão cotidiana quanto qualquer uma vivida por Margot com o ex-marido. A montagem em truque parece transformar o filme em uma animação – mas não custa lembrar que, poucos anos antes, uma sequência muito parecida, e das mais deslumbrantes do cinema recente, se dava justamente em um longa animado: a vida do casal que se passa, toda, em poucos minutos, no inesquecível prólogo de Up (2009), de Pete Docter. O procedimento é o mesmo, mas o sentimento é absolutamente inverso: os corpos se parecem bonecos, e os bonecos se parecem corpos.
O que sobra, em um filme circular, é voltar para o começo. E aí percebemos que aquela silhueta desfocada atrás da fornada de cupcakes que abria o filme não era de Seth Rogen, mas provavelmente de Luke Kirby. Ou, que seja, de um outro homem qualquer. Não faz diferença. O que resta é rememorar o próprio trajeto, lamentar pela maneira como tudo poderia ter sido e nunca foi, e escrever sobre isso em um caderno como forma de ficcionalizar o ocorrido, transformando a vida a dois em um Paranoid Park (2007) às avessas. E toda a trajetória, todos os caminhos, as cores, os cheiros, os temperos, levam inevitavelmente de volta à mesma cozinha. Margot terá de comer frango pelo resto de sua vida.