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Time of Fear (Salve Geral, 2009), Sérgio Rezende

Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2009.

Um filme e seus recados

Na sessão para a imprensa de Salve Geral – que, por motivo desconhecido, acabou se tornando uma populosa pré-estréia para amigos, familiares e equipe – o diretor Sérgio Rezende apresentou o filme explicando um detalhe de seu título: o “salve”, segundo ele, queria dizer “recado”. O filme seria, portanto, um “recado geral”. A situação não se repetirá em todas as sessões, e é preciso tomar cuidado ao evocar um acontecimento exterior para ajudar a esclarecer coisas que já são suficientemente visíveis dentro de Salve Geral. Dito isso, o início em marcha ré dispara uma sistematização em duas vias que perpassa todo o filme, e que determina a fala de apresentação do diretor e a lógica realizadora de Salve Geral. Em primeiro lugar, é preciso salientar a motivação por trás da fala. Pois Sérgio Rezende se obriga a enunciar algo que o filme dá conta apenas de maneira transversa, em uma fala ao telefone que não vem com instruções de leitura. O chefe do PCC diz “Salve geral”, mas o salve pode ser tanto o substantivo à moda antiga – revitalizado pelo vernáculo de presídio – ou um verbo, puro e simples. Ao explicar o título, Rezende adiciona uma nota de rodapé para uma intenção mal cumprida em seu próprio filme. Se o diretor enxerga a necessidade de um adendo, é porque talvez acredite não ter resolvido a contento algo que os espectadores deveriam compreender por contar própria.

Mas pouco importa, aí, se “salve” seja verbo ou substantivo. Pois o incidente da sessão ilustra uma lógica de enunciados que guia toda a construção de Salve Geral, ao pensar a linguagem cinematográfica a partir de um compromisso didático com uma mensagem. À arte parece não caber a virtude de desestabilizar o objeto artístico por dentro – e aqui não falo do conteúdo do “recado”, e sim de sua emissão –, mas sim, e apenas, construir tipos que veiculam partes de um discurso. Pelo filme, não existe uma política própria à arte; cabe a ela, simplesmente, servir como ferramenta para uma política que lhe é exterior. Em Salve Geral, nenhuma partícula da cena existe por um valor que lhe é interno, e que se comunica com o todo por motivos outros que não o do discurso; tudo que vemos funciona, apenas, como parte de um recado maior a ser dado.

Essa lógica simplista, e que está lá na fala inicial de Rezende, é também determinante para a decupagem. Pois se o diretor não acredita no mistério de seus próprios signos, é forçoso que o mesmo movimento aconteça na hora de apontar a câmera. Pois se não há crença no mistério dos signos, não pode existir fora-de-campo – algo que fica claro tanto na sequência do tribunal (onde só ouvimos os fragmentos que “interessam”), quanto na cena em que um preso faz exercícios na barra, saindo e entrando em quadro, calando-se quando não o vemos, e falando uma nova frase sempre que seu rosto está novamente em close. Não existe possibilidade de choque entre o que se filma e como isso é filmado: quando uma personagem diz que pensa o tempo todo em algo – e aí, de fato, não importa o que isso seja – Sérgio Rezende já se entrega logo a um hiper-close. Se Juliano Cazarré faz parte do elenco por sua presença, é interdito fazer mais do que biquinho de mau e gritar o repertório da pesquisa de gírias da bandidagem.

O caminho resultante dessa estratégia é o da banalização pura e simples: o garoto que é preso em um racha de carros tem posters do Ayrton Senna na parede de seu quarto. Não há intenção de instalar o espectador nos ambientes, ou de apresentá-lo de maneira menos unilateral às personagens. A de Andréa Beltrão é professora de piano, mas não vemos ela dando uma aula de piano sequer, porque isso não “serve” à trama. Vemos, porém, ela recebendo uma ligação de uma mãe de aluna cancelando as aulas da filha, porque assim entenderemos que a professora passa dificuldades financeiras, e isso justificará seus atos seguintes. De resto, personagens não têm nomes, pois servem melhor ao reducionismo histórico se receberem alcunhas: o fã de Ayrton Senna logo vira o Piloto; o garoto que gosta de computadores é chamado de HD; o bandido intelectual se chama Professor (e, claro, ocupa as paredes de sua cela com estantes de livros); e até mesmo a advogada ruiva se chama Ruiva. Que isso seja uma prática comum ao universo do crime, tanto melhor: é a lógica dessas reduções que Salve Geral adota sem qualquer restrição.

Mas “salve” é também “recado”, e o filme é um “recado geral” – que, antes de ser cinema, precisa ser lido como mensagem. Assim, mesmo as personagens que têm nome passam a servir como brasões de um jogo de alegorias: Andréa Beltrão interpreta a classe média incestuosa com o crime (e, claro, em dado momento ela vai dizer “Eu só não quero ser juiz de nada”); Cris Couto é a classe alta, sempre reacionária e egoísta em suas ambições; o Estado acha que quem corre é inimigo; a polícia é despreparada e corrupta; e os bandidos, bom, somos todos; mas há bandidos melhores e piores. Se o filme guarda a purgação para as suas personagens principais, pouco importa que ela só seja alcançada pelo crime e a imoralidade – e se começarmos a estabelecer paralelos entre os conceitos de “mãe” e “pátria”, a lista de equívocos se torna ainda mais catastrófica. Na lógica da barbárie, amor de mãe é soberano, e merece todos os violinos para sua subida ao céu.

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