Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2008.
O fim e o princípio
De tempos em tempos, topamos com algum realizador cinematográfico cujo maior interesse parece ser o mergulho em seu próprio universo diegético, fazendo da perspectiva macro de sua obra o trabalho de pequenas variações neste mundo primeiro, nessa estrutura-mãe. No cinema contemporâneo, é o caso de nomes como Tsai Ming-liang, Wes Anderson, Hong Sang-soo, Apichatpong Weerasethakul e Eric Rohmer, por exemplo – diretores com projetos de cinema tão singulares, e de consciência estrutural tão aguda, que são comumente acusados de realizarem sempre o mesmo filme. Embora esse desejo de se embrenhar nos limites de um único universo ficcional passe, invariavelmente, pela idéia de repetição, ao espectador cabe perceber o que muda, identificando os pequenos grãos que fazem com que filmes aparentemente tão parecidos continuem respirando novidade, em movimento que, apesar dos pequenos passos, não cessa.
Por essa lógica, é curioso como, a cada novo filme, M. Night Shyamalan parece construir sua obra na direção contrária a esse trânsito. Desde O Sexto Sentido (1999) – deixando de lado, aqui, os dois filmes que antecedem sua fase de assinatura nos créditos – Shyamalan se entrega a projetos de naturezas (narrativa, estética, referencial, de gênero, de discurso) aparentemente muito diversas, mas que, ao fim, se inscrevem em um corpus desenhado com pena muito firme, em estratégias que se repetem e apontam para uma reflexão maior. Fim dos Tempos não é exceção e, como todo filme de M. Night Shyamalan, parte de uma dupla fruição: a imediata, que corre paralela ao desenrolar da película; e outra pós, onde o filme se acomoda dentro do projeto de cinema do realizador, e passa a espelhar questões que giram em torno de uma mesma chave. Seus filmes costumam ser universos fechados e independentes, mas o encantamento surge não da percepção do que muda, mas sim do que, apesar das aparências, permanece o mesmo.
Na primeira seqüência de Fim dos Tempos, um diálogo entre duas jovens no Central Park é cortado por um grito que explode fora de quadro. Após o grito, uma das garotas, com um livro na mão, diz não se lembrar em que página havia interrompido a leitura. O esquecimento, porém, já havia sido manifestado segundos atrás, logo antes de ouvirmos o grito. A frase é repetida mais uma vez, para o estranhamento da outra personagem. Ao olhar em volta, ela percebe que todas as pessoas que passavam pelo parque estavam, agora, paralisadas. Os animais e as plantas seguem em movimento, mas as pessoas parecem congeladas no tempo. Olhando para frente, a menina do livro retira o espeto que prendia seu cabelo e, lentamente, o enfia de ponta em sua própria jugular. Como em todos os seus filmes, Shyamalan usa o prólogo como uma espécie de guia de aproximação a tudo que veremos pelo restante da projeção. Narrativamente, ele nos instaura no estado de exceção que conecta as jornadas individuais de todos os seus filmes: por motivo desconhecido, todo um grupo de pessoas concentrado em um mesmo lugar é tomado pelo desejo comum de cometer suicídio. A construção de cena nos coloca no cinema de gênero bastante familiar, com decupagem que revitaliza suas convenções narrativas.
É preciso, porém, atenção para outros detalhes: se existe uma constante no cinema de Shyamalan, é que o gênero é sempre um primeiro passo para se chegar à problematização da virtude no mundo contemporâneo – algo que o torna muito próximo de Tsai Ming-liang. Embora seus filmes não tenham pretensão ou desejo de resolver questões imediatas, é bastante claro como eles respondem ao estado de coisas em que se inserem. Desde A Vila (2004), portanto, Shyamalan vem pensando as reações da sociedade aos acontecimentos de 11 de Setembro de 2001, mas sempre por fora da política palaciana, interessado, na verdade, na sobrevivência das virtudes após o horror. E, em Fim dos Tempos, essa preocupação se reflete no primeiro sintoma de estranhamento: a repetição inconsciente de uma mesma fala. Assim como A Vila se abria como uma reflexão a partir do visível, e A Dama Na Água (2006) pensava o ato de narrar, Fim dos Tempos é, ao fim e ao cabo, um filme sobre a fala como instrumento mais evidente de comunicação com o mundo.
Pois, além do enfraquecimento inicial dessa faculdade como prenúncio da crise, todo o decorrer de Fim dos Tempos é construído como reflexo da fala, da comunicação. Essa preocupação fica expressa estilisticamente nos tons acima nas interpretações dos atores, mas também no próprio transcorrer da narrativa. Desde o primeiríssimo momento, somos bombardeados com toda sorte de informações cruzadas pelos meios de comunicação em tela (a onipresença das televisões, dos rádios e, sobretudo, dos telefones celulares), enquanto, entre as personagens, os pequenos conflitos que as separam são, também, de natureza comunicativa. O excesso de informação – como recepção ou busca – vem encobrir os problemas que separam as pessoas: a menina que cochicha sempre que tem algo de íntimo a dizer, a oratória professoral de Elliot (Mark Whalberg) que vem preencher os silêncios do casamento com Alma (nome-piscadela à esposa de Alfred Hitchcock, interpretada por Zooey Deschanel), o anel que muda de cor para expressar o interior calado às palavras, o criador que conversa com suas plantas, mas espia os vizinhos com um binóculo.
Aos poucos, a existência em Fim dos Tempos é aproximada a um personagem isolado de A Dama na Água: o sujeito que passa o dia em casa, recebendo notícias sobre a guerra pela televisão. O que parece atormentar Shyamalan é a percepção de que, se existe algo capaz de colocar o mundo em risco, é justamente a falta de comunicação, e que ela se tornara mais aguda após o 11 de Setembro. É muito ilustrativo, nesse sentido, o veículo escolhido pelo diretor como causador do ataque: onde há excesso de (des)informação e carência de relações, passa-se a temer as plantas, o vento, o mundo. A idéia, muito propagada por certa parcela da crítica, de que Fim dos Tempos seria um filme “ecológico” cai logo por terra, ao menos no sentido mais banal em que o termo vem sendo usado. O que Shyamalan faz é planificar os níveis de relacionamento, colocando tudo em um mesmo plano: o homem, a vida, a morte, a natureza, o sobrenatural, a realidade, a ficção. É essa relação mais aberta com a vida que está desgastada, pois estamos todos enclausurados em nossos impenetráveis abrigos, percebendo todo o restante como mera plataforma para a existência do “eu”.
A idéia de ecologia não passa, portanto, pelo simples maltrato ao verde, mas sim pela perturbação desse equilíbrio maior que é sempre buscado pelo mundo. Filma-se o vento nas plantas para colocá-las em movimento; para, como faz Apichatpong Weerasethakul (em herança direta de Lumière, e seu maravilhamento primeiro diante da possibilidade do cinema de imprimir o movimento das folhas), tornar visível sua vida, sua pulsação. Nesse sentido, é essencial a cena em que a trinca de personagens principais se abriga na casa de uma velha eremita – alheia a toda sorte de acontecimento em seu próprio confinamento. Essencial, pois Shyamalan desmontará o isolamento como porto-seguro: é preciso, sobretudo, estar em sintonia com o mundo.
E isso se dá, em Fim dos Tempos, justamente pela fala. Não à toa, o que previne a morte das personagens principais (lembremos, aqui, dos garotos que são mortos por tentarem arrombar uma porta que não lhes fora aberta) é justamente a restauração da essência da comunicação: fazendo uso de um tubo construído pelos escravos para romper a barreira entre a senzala e a casa principal, Elliot e Alma – o casal calado que esquecera a cor do amor – vão, enfim, conversar. Conversam sobre quando se conheceram, lembrando os motivos que uniram suas vidas para, com isso, perceber que, sendo a morte inevitável, é melhor incorporá-la à vida ao lado de quem amamos. Quando eles se encontram, em meio à tempestade de vento, somos informados o dia, hora e local daquele encontro, como acontecia nos momentos de crise.
Com essa simples informação visual, Shyamalan reinterpreta o “acontecimento” de seu título original, em uma declaração de princípios de inegável contundência. O diretor realiza, ali, a operação predominante em todo o seu cinema: o resgate da virtude em seu significado original, aplicada à vida contemporânea. Não à toa, o círculo se fecha com um retorno ao prólogo: após a restauração da ordem, somos levados à França, onde a cena de abertura do filme se repetirá. Shyamalan implode a possibilidade de vinculação política imediata ao seu cinema, pensando que a vida pós-11 de Setembro não é uma questão estratégica, mas sim um estado de nervos que – como na Guerra Fria – faz sombra em todo o planeta. Assim como sua construção de cena sempre privilegia a sugestão do extra-campo (pensemos no já antológico travelling que acompanha a arma que passa de mão em mão, destituindo a morte de um rosto – à maneira da fragmentação pelas mãos percebida por Deleuze no Bresson de Pickpocket), seu discurso abre para o contínuo do espectador, para as luzes que se acendem ao fim da sessão. Basicamente porque, em sua crença de um mundo planificado em que todos os elementos buscam a harmonia, o fim de uma era é sempre o princípio de uma outra.
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