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Speed Racer (2008), Lana and Lilly Wachowski

Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2008.

Mundo-pixel

Na faixa comentada do DVD de Os Incríveis (2004), o diretor Brad Bird diz que uma de suas maiores ambições com seu filme era trabalhar elementos do cinema normalmente não buscados pelas produções em animação. Em vez de fazer uso do foco infinito e da elasticidade praticamente ilimitada do desenho, Bird construiu seu filme em cima de passagens de foco, compressões de eixo, limitações sensitométricas, e outros recursos que a ausência da câmera eliminava dos filmes em computação gráfica. Em Os Incríveis, as “limitações” de um suporte mais rígido eram absorvidas por uma criação em material não determinado por elas, reconhecendo que tais manobras de produção geram efeitos estéticos particulares hoje já carregados de sentido, e que emular esses efeitos seria uma maneira de, transversalmente, buscar esse mesmo resultado. De certa maneira, os irmãos Wachowski fazem, em Speed Racer, o caminho absolutamente inverso. Se os filmes anteriores da dupla ainda patinavam em um uso de computação gráfica bastante tradicional (embora, independente de críticas, seja impossível ignorar a monstruosa sombra que Matrix deixa sobre grande parte do cinema de gênero produzido desde seu lançamento), em Speed Racer, o mergulho nas possibilidades gráficas do CGI tem inegável clareza em sua intenção: realizar um filme de animação live action.

Se essa intenção não é, em si, nada nova – comum a filmes tão distintos quanto Uma Cilada Para Roger Rabbit e Sin City – ela dificilmente alcançou resultados tão expressivos. Essa força vem da não insistência em promover interação entre os dois registros, pensando a sobreposição dessas camadas como uma espécie de colagem visual. Embora as limitações da câmera de vídeo sejam ainda mais críticas do que as da película, Speed Racer as anula com um trabalho de sobreposição de planos. O resultado é um filme absolutamente chapado, sem profundidade de campo ou perspectiva, como se os planos fossem, de fato, recortes sobrepostos em uma folha de papel. Se essa busca pela extrema opacidade parecia, até hoje, exclusiva ao que costuma se chamar de cinema experimental (os filmes de Man Ray vêm à cabeça diversas vezes durante a projeção), os Wachowski parecem buscar, em Speed Racer, a equivalência entre o signo estritamente visual e a construção narrativa.

Temos um vapor de trama que é apenas o suficiente para ser identificável ao espectador, mas que funciona como pretexto para uma discussão sobre o estatuto da imagem no mundo contemporâneo de surpreendente complexidade. Saímos da busca por uma suposta fidelidade narrativa à fonte original (desejo que sentimos em Batman Begins, Sin City ou mesmo em Homem de Ferro), para o interesse pelas encruzilhadas estéticas entre os diferentes suportes – fazendo, com o anime, cruzamento parecido com o que Ang Lee faz com os quadrinhos em Hulk (2003). Esse parentesco voluntário com o anime acaba traçando, para Speed Racer, uma meta ainda mais ambiciosa: trata-se de um filme disposto a transitar por um volume considerável do imaginário audiovisual japonês pop contemporâneo. Em seus 135 minutos, Speed Racer vai do anime ao pinku (gênero marcado na erotização “rosa” da personagem de Christina Ricci), passando pelo cinema de artes marciais, o manga, e um ou outro flerte com o universo yakuza.

Essa esquizofrenia visual é cuidadosamente sustentada por uma intenção um pouco mais profunda: se Brad Bird encontrava na finitude do suporte cinematográfico a maior expressividade de seu filme, os Wachowski trazem para o cinema o fluxo constante possibilitado pela animação. Com as transições em cortinas humanas que cruzam a tela, substituindo um plano pelo seguinte, os Wachowski parecem encantados com a possibilidade oferecida pela computação gráfica de se produzir um cinema “sem cortes”. Ao empilhar planos que, destituídos de qualquer profundidade visual, criam uma só massa colorida que toma toda a tela do cinema, a montagem que desliza, horizontalmente, gera um fluxo constante de imagens, tentando dar conta de um mundo em que as relações entre as diversas dimensões de tempo-espaço (concreto ou virtual) já estão plenamente assimiladas.

Nesse sentido, é muito expressiva uma imagem que acaba por aproximar, mesmo que por vias inesperadas, o filme dos Wachowski do cinema de Brian De Palma. Após a corrida final, a cena do pódio é entrecortada por máquinas fotográficas que se empilham, mediando em diversas camadas o olhar do espectador para um mesmo e único plano. Se em filmes como Dublê de Corpo (1984), Missão Impossível (1996), ou, sobretudo, Olhos de Serpente (1998), essa multiplicação dos registros vinha sempre ressaltar a insuficiência do quadro cinematográfico (afinal, De Palma é um apaixonado pelas possibilidades do extra-campo), na construção dos Wachowski eles vêm sempre encerrar um mesmo mundo que está todo na tela. Assim como a aparência do plano-sequência (mesmo, e especialmente, quando falso) em Olhos de Serpente deixa os fatos escorrerem pelas bordas, aqui a sobreposição dos registros (muito claramente expressos na seqüência das câmeras, mas que na verdade determinada toda a construção visual do filme) e a passagem “invisível” de um plano para outro constroem um mundo onde o fora de quadro simplesmente não existe. Mesmo quando é uma só, a câmera, em Speed Racer, é como uma entidade sem corpo físico, capaz de escorrer pelas seqüências por todos os ângulos possíveis, dando conta de um mundo em tamanha suficiência que só é possível por ele ser inventado.

Essa vontade de criar um mundo plano gera, em sua distorção, um dos mais belos momentos do filme. Em um diálogo qualquer, uma leve compressão de eixo desfoca a cidade que brilha atrás de um personagem. Saímos do cinema sem traço de lembrança da conversa, ou de quem conversava. Mas ficamos marcados pelas luzes da cidade que, com aquele leve desfoque tão impróprio à opacidade daquele mundo, se transforma em um mar de pixels cintilantes. Fora do registro de visibilidade absoluta construído pelo próprio filme, aquele mundo nos é exposto em sua evidente artificialidade de criação. E a imagem que vemos, no fundo do quadro – desnudada de representação outra que não a exposição de sua própria composição – é incrivelmente bela.

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