Publicado originalmente na Cinética em Março de 2008.
Em descompasso
Em seus primeiros 50 minutos, Dia dos Pais assume uma estrutura de road movie para transitar em uma área marcada por dias mais prósperos: o Vale do Paraíba. Não existe, porém, no filme, intenção de pensar esses lugares pelos seus dias como pólos econômicos, mas sim de se instalar nesses espaços para olhar a poeira que cobre as pegadas do passado. Em vez de pensar o passado a partir do presente, tentar compreender o presente como resultado de um passado. Se essa idéia de registro faz pensar nos filmes de Jia Zhang-ke (cineasta que, com Em Busca da Vida (2006), In Public (2001) e Plataforma (2000), vem fortemente à cabeça durante a projeção), Dia dos Pais se diferencia por ser, sobretudo, um filme “atrasado”.
Seu segundo plano sintetiza muito da relação que atrairá maior interesse ao longo de todo filme: a câmera é colocada no meio de uma rua de terra enquanto, ao longe, vemos um homem carregando os restos de uma árvore derrubada. Na banda sonora, ouvimos um morador falar, fora de quadro, sobre como a cidade se configurava na década de 1970. Na imagem, porém, o homem pára, re-amarra seu feixe de galhos e, desviando levemente seu curso, pede licença ao passar pela câmera. O plano é essencial, pois já desenha a dupla relação que será pensada constantemente na construção do filme: a intrusão de um olhar destacado, quase científico, sobre um lugar e seus habitantes; e a percepção de que, em todos esses lugares, o filme chega, sempre, atrasado em relação aos acontecimentos que os determinam. Os espaços e os personagens de Dia dos Pais são marcados por um passado que se põe fora do filme, mas que afeta tudo que vemos na tela.
Esse atraso constante é presente tanto na construção de som fora de quadro, quanto na sua mais expressiva metáfora visual: o trem – imagem de modernidade recorrente no cinema desde a chegada à estação, de Lumière, e pensada, aqui, de forma semelhante à de Jia Zhang-ke em Plataforma. É o seu desaparecimento que marca a decadência da cidade na primeira fala, e é o retorno desse ícone que virá reconfigurar vários dos planos do filme. Em um deles, vemos a conversa de três moradores ser interrompida pela passagem do trem. Eles esperam, em silêncio, até que o movimento se complete para recomeçarem, assim, seu papo. A impressão de que olhamos pessoas que tentam resistir ao movimento do mundo industrial é reforçada pela câmera quase sempre estática, pela duração dos planos e pela imutabilidade aparente da paisagem. Assim como Cao Guimarães, em Andarilho (2007), Julia e Leonardo buscam significado na oposição visual de vetores em movimentos (as pessoas e os meios de transporte) sobre uma tela essencialmente fixa (a paisagem e, sobretudo, o enquadramento).
Em seus primeiros 50 minutos, Dia dos Pais desconstrói sua própria natureza documental, pois se os documentos normalmente têm a intenção de registrar momentos definidores, o filme está sempre correndo atrás de uma História que insiste deixá-lo para trás. Assim como o filme parece só trazer o pós-acontecimento – mesmo que eles sejam micro acontecimentos, como a funcionária que recolhe as cadeiras de um bar; a passagem não filmada do vice-prefeito pela cidade onde a equipe está; o rastro de poeira deixado pela partida de um ônibus; um poste que se apaga – a inclusão desse suposto “fracasso” documental no filme é interessante, pois move a decisão de olhar para o que restou. Nesse sentido, é ilustrativo um plano em que a equipe persegue, de carro, o trem que corre ao seu lado, como o filme parece caçar uma História que não se deixa pegar.
Em toda essa convivência de tempos distintos – pois um dos grandes méritos da estrutura de Dia dos Pais é trazer para o presente uma presença invisível, mas muito forte, do passado – é um tanto irônico que o filme perca seu rumo justamente quando presencia um choque temporal. Em uma de suas várias viagens de carro, a equipe é obrigada a parar ao ver a estrada tomada por um rebanho de vacas. O impasse inicial gerado por esse embate de tempos e movimentos distintos (as vacas de um lado, o carro e a câmera de outro) por um minuto sugere os momentos de crise que sempre rasgam os filmes de Abbas Kiarostami (a luz que acaba em ABC África, o jabuti em E O Vento Nos Levará…). Porém, o incômodo desse duelo de mundos cede espaço, aqui, a uma rememoração de Julia a Leonardo, lembrando como ela costumava brincar de contar vacas quando, ainda pequena, passava por aquela estrada.
A partir dessa ruptura, Dia dos Pais deixa de se concentrar no tempo já passado e se transforma, de forma que parece mais brusca à medida que a virada se revela menos interessante, em uma tentativa de Julia em reconstituir a história de sua família. Embora vários filmes ganhem força ao incorporar o processo do realizador em sua montagem (pensemos em toda a obra de Eduardo Coutinho), em Dia dos Pais, essa invasão do espaço observado machuca o filme, pois insere um novo dispositivo que, até aquele momento, ainda não se apresentara. Essa inserção é prejudicial, pois se a intenção do filme era, desde o início, reconstituir uma trajetória familiar, o cuidadoso olhar que norteia as reflexões espaciais de seus primeiros dois terços passam a parecer mero acidente.
A observação de lugares abandonados por uma certa história se torna distração ocasional; desvio de rota em uma jornada de intenções outras. A câmera, até ali tão cuidadosa e pensada em sua maneira de se relacionar com aquele universo, perde o rigor ao tentar simular uma proximidade, ao tentar interagir com um universo que não parece verdadeiro ao filme. A sobreposição de uma questão particular sobre um espaço até então pensado enquanto organismo desestabiliza o espectador, mas essa desestabilização é frustrante, pois sua consideração pelo dispositivo parece empurrada em um filme até então movido por preocupações outras. O que parece faltar, em Dia dos Pais, é a percepção, por parte dos diretores, de que o melhor filme guardado em seu material não era exatamente aqueles que eles saíram de casa para fazer.