Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2010.
Ecoando no vazio
Mulher à Tarde parte da idéia de instante pregnante, que é tirada não exatamente do cinema, mas da pintura e da fotografia: o recorte de uma pose dentro de uma duração de instantes quaisquer, que é o momento que, idealmente, expressa a essência do que se dá nessa duração. Entrecortado por cartelas que parafraseiam os títulos descritivos tão comuns na pintura (Mulher com o sol sobre os joelhos; mulher deitada; etc), Mulher à Tarde usa o cinema para dar acesso justamente ao que está ausente das pinturas: a maneira como a sucessão de instantes quaisquer conduz à fixação de um deles como um instante pregnante. Ao fim de cada parte, a ação das personagens desemboca naquela que intitulava sua respectiva parte, e somos conduzidos a uma nova ação. O instante pregnante vem carregado por aquilo que antecede a pose, e é reconfigurado na migração da pintura para o cinema.
É bastante natural que um filme primordialmente interessado pela duração dos movimentos se estruture como Mulher à Tarde: sequências de longos planos em tableau que nunca permitem o contraplano, e que acompanham as personagens no decorrer de suas ações dentro do espaço. É perceptível um forte rigor na composição dos enquadramentos e da luz, além de uma direção de atores de notável limpeza, que se concentra em frases murmuradas e gestos desnudados de maior expansão. A predominância do foco pontual traz outros paralelos com a pintura, onde o desfoque do fundo evoca pinceladas impressionistas, e a rarefação pixelar do vídeo, acentuada pelo trabalho de foco, por vezes faz pensar no atomismo de Seurat, onde as figuras humanas parecem prestes a evaporar no ar. O gosto pelo prosaico acentua o esvaziamento da cena, onde se limpar com um pano molhado se torna um ápice dramático, e o silêncio é tão palpável que uma das personagens consegue ouvir o barulho emanado pelos objetos.
Até aqui nos concentramos na pedra fundamental conceitual de onde parte o diretor; mas o cinema é composto de filmes, portanto é preciso olhar menos para o raciocínio gerador e mais para a obra que ele alimenta. Mulher à Tarde se quebra justamente nesse salto do conceito ao filme. Assim como acontecia em medida mais leve com Terras, de Maya Da-Rin, o contato proposto pelo filme vem mais pelo entendimento do que pela sensibilidade. As linhas de roteiro que costuram os quadros (a onipresença da água; a parede que deixa marcas na menina, e a menina que deixa marcas na parede; a lembrança desaparecida na caixa de fotografias que remetem às composições em still preponderantes no filme) não são suficientemente fortes para transformar essa sucessão em algo mais do que uma repetição, e a repetição por si só não produz qualquer estímulo que já não estivesse contido em uma única parte.
E se tivéssemos apenas uma das poses, em vez das várias que estão no filme? Apreendemos algo da duração e do acúmulo que já não pudesse ser apreendido diretamente de um dos vários fragmentos que compõem o filme? Mulher à Tarde deixa que essas inquietações ecoem no silêncio mole e um tanto enfadonho de sua duração, tão dedicado à beleza de planos que não são suficientemente belos, e reticente em relação a sentimentos que não parecem realmente estar ali. O que sobra é essa relação fria e um tanto acomodada com uma idéia que parece se perder antes mesmo de se materializar, e que sufoca a fagulha inicial que lhe conferia algum brilho com uma morosidade rigorosa e um desejo desmedido de querer dizer mais do que realmente se tem a dizer.
Esse processo de esvaziamento que vemos no filme de Affonso Uchoa acontece, por vias inversas e improváveis, também em A Falta Que Nos Move, de Christiane Jatahy. Mais uma vez, temos aqui um projeto conceitual e a necessidade de escancará-lo, para então realizar um filme a partir desse primeiro dispositivo. O assustador de A Falta Que Nos Move é que, mesmo abundante de palavras, gestos e falsas situações, é impossível afastar o sentimento de que tudo que vemos em tela atesta apenas sua própria falência. Em um filme supostamente preocupado com as políticas da cena (metalinguagem, processo, dispositivo, auto-ficção – todos os conceitos do momento parecem alimentar o filme e rendem frases como “Eu prefiro estar aqui do que na realidade”), é deprimente que tudo desemboque em uma hiperinflação do banal absoluto como matéria dramática, onde a simples impossibilidade de se jantar na hora que se quer (por conta de uma obstrução da diretora) se torna um grande drama existencial. A Falta Que Nos Move é uma espécie de Seinfeld sem humor, onde a política aparece reduzida a confrontos de ridícula banalidade, mas que aqui são levados a sério, alçados ao panteão dos grandes temas. A Falta Que Nos Move parte da mesma política de encenação que já serviu a filmes como Iracema e A Lira do Delírio, mas a dilui a ponto de sobrar não mais que uma euforia desmedida pela neurose (das personagens e da diretora). O que resta é esse cinema que corre atrás do rabo falso que ele próprio colara em suas costas.