Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2011.
A volta dos que não foram
Há traços em comum suficientes entre Os Monstros e Estrada para Ythaca (2010) para transformar a idéia de autoria compartilhada do grupo de diretores em uma autoria conjunta. Em ambos os filmes, existem prerrogativas parecidas, tanto estética – o esvaziamento das atuações; a predominância dos planos gerais; a elasticidade da duração; o rigor na anulação de uma beleza plástica clássica nos quadros – quanto narrativamente. São dois filmes que partem de um luto e que narram o seu trajeto de superação, a ser purgado ao longo da projeção; em ambos, o que parece predominar é o discurso da amizade – em Os Monstros, chegando inclusive próximo de uma idéia de gueto – e isso, somado à nada convencional estrutura de set de Ricardo e Luiz Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes, tem sido suficiente para criar uma relação crítica francamente monótona com as obras. Por sorte, tanto Os Monstros quanto Estrada para Ythaca oferecem muito mais a se explorar do que permite o mínimo esforço para se cavar lides em cadernos culturais, ou o desespero que se dedica tão obstinadamente a procurar a próxima saída para o cinema brasileiro, sem sequer se dar conta do lugar onde se está.
Para começar a desconstruir minimamente o discurso quase uníssono em torno do trabalho do grupo, talvez seja necessário voltar ao luto de Estrada para Ythaca, sobre o qual todo o longa será assentado. Pois, embora o luto seja motivado pela morte de um amigo, no filme não é exatamente o amigo morto que é tomado como mola propulsora, mas sim uma fotografia, uma imagem estática que o mostra ainda vivo e em momento de mal fotografada e espontânea felicidade. Não à toa, quando o personagem finalmente aparece – na tão comentada citação à obra de Godard e à imagem de Glauber Rocha – ele aparece novamente vivo, em pleno movimento, apontando os caminhos do futuro do filme. É, portanto, uma morte que determina a vida, um luto que age sobre sua própria superação.
Mas Estrada para Ythaca evita a todo custo dar a esse luto uma imagem mais abrangente do que aquele breve instantâneo motivador, do qual o filme parte para não mais retornar – e lembremos que, em A Odisséia, Ítaca é o destino na jornada de retorno do herói; é sua casa, seu lugar para voltar após o cansaço da guerra. Tanto Ythaca quanto Os Monstros fazem uma jornada de purificação, como se o cinema – com todas as batalhas perdidas antes de os diretores começarem a filmar – precisasse reencontrar o caminho de casa. Com essa pequena inversão de eixo, Estrada para Ythaca deixa de ser um suposto elogio às belezas da amizade e se firma como uma tentativa de volta àquela primeira imagem, aquele porto-seguro, e à capacidade espantosa da fotografia de congelar um momento – algo que o filme tentará resgatar em vão o tempo todo, fracassando em fixar imagens que são gravadas em inevitável movimento – mas também de conservar uma alegria fugidia que a duração do cinema expõe à ruína do tempo. Por outro lado, se a fotografia é capaz de embalsamar um instante, somente os mortos podem ser embalsamados; o cinema, ao contrário, é vivo, demasiado vivo. Estrada para Ythaca é um filme supostamente melancólico, infiltrado pela franca diversão de se fazer um filme. É uma tentativa de amortecer a incontornável alegria de se estar vivo. É – como indicam as próprias falas – um projeto de fracasso, de ponta a ponta.
Os Monstros também parte de um luto, que aqui ganha uma forma de fato fantasmagórica, em uma aparição no banco de uma praça. Se Estrada para Ythaca pode ser visto não só pelo que encena, mas também pelo que compõe a sua encenação, a morte em Os Monstros traz igual eloquência: ela vem por meio de uma canção e de um truque cinematográfico – uma sobreposição que cria um fantasma dentro de um espaço concreto – citando a cena em que uma aparição fantasmagórica de Julie London canta “Cry Me a River”, em The Girls Can’t Help It (1956), de Frank Tashlin. Os Monstros não é tão somente o triunfo – passageiro e de curto alcance, já que as contas continuarão chegando após o filme terminar – da sensibilidade em um mundo que a confina ao gueto, mas também o luto de um grupo por uma modalidade de canção e de cinema que eles reconhecem como belo, pleno e absolutamente impossível.
A canção remete ao cinema que a transportava – a magia industrial da Hollywood clássica – mas aqui ela não é mais que o fantasma de um amor passado. Mas, mais do que uma negação do classicismo pela modernidade, a relação dos irmãos Pretti e dos primos Parente com a Hollywood clássica se mostra, em Os Monstros, fruto de encantamento, desejo e um palpável assombro. Se em Estrada para Ythaca ainda pairava a impressão de um divórcio consciente do mundo em defesa de um certo tipo de cinema – algo que uma leitura superficial de Os Monstros também não terá dificuldade em encontrar – aqui há uma inversão radical que ressignifica o filme anterior: o maior desejo é justamente o de contar uma história, de transformar qualquer ruído em canção, de moldar o caos com uma estrutura e uma sensibilidade que não apenas se expresse, mas crie sentido e se comunique. E, apesar desse desejo, Os Monstros vem para deixar claro o quanto essa possibilidade já está completamente perdida. Pouco importa que o luto seja pela pouco crível morte de um amigo, ou pela ainda menos crível morte de um relacionamento que nunca conheceremos – a estranheza em ambos os filmes vem também do quanto um recurso de dramaturgia tão eloquente parece deslocado dentro do universo dos diretores; como se a jornada de superação da mais clássica dramaturgia assombrasse tanto como um desejo quanto por algo que não encontra, nesses filmes, seu verdadeiro lugar.
Pois, assim como Estrada para Ythaca, Os Monstros é necessariamente formado por suas possibilidades. Mas essas possibilidades são menos questão de produção – de dinheiro, de estrutura, de projeto – e mais de conjuntura histórica. Seus diretores são filhos de seu tempo, e não há retorno possível ao clássico que não o transforme em classicismo, esse reconhecimento moderno de que a única possibilidade de retorno ao passado é se aterrando fortemente no presente, marcando uma diferença que transforma o que é – o clássico – em um “ismo”. Se faz necessária, novamente, a jornada de volta. Pois como retomar as convenções da canção e do cinema hoje, depois de tantos anos de agressão, mau uso e esvaziamento? Como é possível cantar novamente após todo músico de barzinho ter vulgarizado esse “em si” na linha de montagem que reproduz a “sensibilidade coletiva” das canções de um Djavan? Como lidar com a nostalgia de uma época que não se viveu, e que não parece mais cabível na lógica cínica e utilitarista dos dias de hoje? Como se entregar à dramaturgia clássica quando se nasce em uma época em que ela já não parece fazer sentido? O que fazer quando a vida – a arte, as mulheres, a cerveja, as festas, o presente e o futuro – se mostra tão abaixo daquilo que os filmes nos prometiam na infância da modernidade?
Os Monstros traz suas respostas cicatrizadas em seu próprio corpo. A Hollywood clássica e a aderência às convenções aparecem aqui muito como testemunhas de sua absoluta ineficiência fora de seu lugar e tempo originais – o que transforma o filme em uma inversão da premissa de Aquele Querido Mês de Agosto (2008), no qual o melodrama será retomado após seu lugar e seu sentido original terem sido reencontrados. Não adianta tentar fazer do encanto estrangeiro algo familiar, pois uma cena de jovens gritando “Festa! Festa! Festa!” hoje será ridícula em qualquer lugar, mas um tanto mais ridícula quanto os jovens já não são tão jovens assim, e sua empolgação aparece emoldurada pelo assombro arquitetônico da orla de Fortaleza. Os Monstros tem a claríssima virtude de perceber essa impossibilidade – de subir cada cantada alguns graus em sua escala de patetice – e, novamente, se realizar como crônica de um fracasso, como uma comédia desesperada sobre seu próprio drama de tentativa de existência. Mas enquanto Estrada para Ythaca se tornava, com isso, um filme até certo ponto redundante, defendendo a possibilidade de um certo cinema do qual o filme já era prova mais que concreta de existência, esse esforço narrativo de Os Monstros consegue, mesmo que por estradas acidentadas, uma das grandes qualidades do cinema clássico norte-americano: contar uma história que se dedica a um grupo de personagens, e a partir deles falar sobre o mundo.
Mas por mais que as negações e a consciência de suas impossibilidades sejam essenciais, não há arte possível quando se desvia de todas as afirmações. E Os Monstros, fruto dessa saudade infinita, dessa imaginação que recria a beleza de um vaso inteiro, mesmo tendo-o visto pela primeira vez já quebrado, encontra algo que, embora distante daquele paraíso perdido que cantava no banco de uma praça, pulsa como uma possibilidade digna de comprometimento. E se, como bons admiradores de João César Monteiro, é preciso desconstruir 500 anos de História para se encontrar o que realmente é, os diretores exorcizam o luto por um cinema impossível justamente em sua performance de free improv, nessa possibilidade de não só ressoar (mesmo que apenas entre um grupo próximo de amigos), mas de se criar um momento banal, inútil e talvez até infrutífero, mas certamente digno de toda convicção. É ali, nos dois planos finais – quando a câmera sai do tripé e é chamada à dança; quando a granulação do vídeo noturno ganha uma limpidez que clarifica gestos, detalhes e pulsões que se escondiam na longa noite do filme – que Os Monstros deixa de ser um perspicaz, justo e frontal acerto de contas com seu presente e passado, e mergulha de olhos fechados nas possibilidades do futuro. E esse tipo de mergulho é sempre algo excitante e belo de se assistir.
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