Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2012.
Por um fio
O Lar (2008), primeiro longa de Ursula Meier, era uma estréia no mínimo curiosa: reunindo ícones do cinema europeu de autor como Isabelle Huppert e Olivier Gourmet, e duas das mais determinantes colaboradoras de Claire Denis (a fotógrafa Agnés Godard e a montadora Nelly Quettier), a diretora se cercava de boas companhias para desfiar uma versão européia da estilização quirky de Wes Anderson – sensibilidade que, com a mudança geográfica, só poderia terminar como um filme de horror. A combinação de elementos tão díspares trazia a O Lar um certo frescor, com suas cores vibrantes e o sol intenso a acumular no asfalto que perturbava o lar que dava título ao filme.
Minha Irmã é um tanto mais comum. Agnés Godard e Nelly Quettier continuam por aqui, mas talvez o traço mais marcante a permanecer do primeiro filme remeta àquela inusitada escalação de Olivier Gourmet: o cinema dos irmãos Dardenne. Deixemos de lado a inflamação estilística da câmera na nuca; o que busca Ursula Meier é confrontar a sobrevivência do sujeito no meio social com a impossibilidade do plano geral, de ver tanto quanto (ou menos que) o protagonista a quem a câmera acompanha com um osso entre os dentes e o rabo a balançar. A diretora se afasta da ironia e da estilização – frutos mais íntimos da distância – e se cola a Simon (Kacey Mottet Klein), garoto que se ocupa de pequenos furtos em uma estação de esqui e comanda todo um comércio dessas mercadorias para sustentar Louise (Léa Seydoux), a menina mais velha que dá título ao filme. Minha Irmã é dependente da vivência e do magnetismo de Simon, duas características que Kacey Mottet Klein consegue imprimir com razoável regularidade.
A irrestrição dessa fidelidade do diretor por seu protagonista tem certa beleza. Mas Minha Irmã é um filme sobre status quo, sobre a mobilidade de um garoto entre as partes baixas (e pobres) e altas (riquíssimas e temporárias) de uma mesma montanha. Essa imobilidade, essa mímese impressionista, acaba sendo uma forma de manutenção desse mesmo status quo, mais ainda dentro da idéia hoje perversa que se tem de um cinema de autor, no qual os sussurros das impressões (e do primeiríssimo plano) falam mais alto do que os berros do mundo. É um procedimento com uma afirmação (metalinguística) clara: o mundo não é tão importante quanto o olhar do sujeito sobre esse mesmo mundo. O revés da proximidade é tirar parte da potência de uma das características mais marcantes do cinema: a de usar a câmera como coro grego, como comentarista e júri de personagens e situações que não estão soltos na cena, mas foram ali colocados e imortalizados por um olhar, uma outra sensibilidade. Se essa é uma das possibilidades de emancipação do cinema de dramaturgia em relação ao teatro – não somente a montagem, mas o que possibilita a montagem – há, no automatismo da câmera que se agarra ao protagonista, uma anulação do ponto de vista que nos devolve ao teatro – um teatro extremamente próximo e desfocado, talvez, mas ainda assim isento de mobilidade, lembrando a máxima godardiana de que acompanhar com a câmera o movimento dos cavalos é justamente a maneira de anular seu movimento, de mostrá-los parados. E, mais grave, a câmera próxima é também uma forma de isolamento, de congelamento de um personagem cuja sobrevivência depende da mobilidade. Mais do que ir e vir, como faz Simon, a proximidade é uma forma de tomar o poder, mas manter as relações sociais fixas, estanques.
Claire Denis, essa referência óbvia e concreta aos dois longas de Ursula Meier, é também uma cineasta da explosão da proximidade. A diferença é que essa proximidade é frequentemente contrastada a um fora – dos quais o cinema de gênero talvez seja o mais potente – que obriga a câmera e as personagens a se reposicionarem. Minha Irmã não é como Bom Trabalho (1999) ou O Intruso (2004), mas há momentos em que a possibilidade de afastamento encontra a força embrionária de Noites Sem Dormir (1994), Chocolate (1988) ou mesmo A Promessa (1996), ainda o melhor filme dos Dardenne. São momentos em que a diretora sai dos currais do cinema de autor e retoma as velhas “soluções” que separavam os grandes artistas dos operários competentes no velho cinema de Hollywood.
Sempre que a câmera se permite afastar, olhar para as situações com alguma distância, ou mesmo se dispersar na paisagem, reencontramos algo da peculiaridade do olhar que era mais flagrante em O Lar e que aqui é reservada para breves, mas importantes, digressões. Esses momentos são geralmente reservados a interstícios banais, como os travellings que giram as fachadas dos prédios, mas por vezes tomam a direção nas curvas mais importantes de dramaturgia. Com esses recuos, até mesmo a proximidade ganha em expressão. Se a estrutura de Minha Irmã torce o rabo na grosseria dos gritos de Simon de que Louise não é apenas sua irmã – solução tão estabanada que chega a comover pela honestidade de sua ineficiência – no momento seguinte um plano de conjunto em leve contra-plongée ressalta a diferença de altura entre os dois, redimensionando uma relação que a proximidade da câmera até então bem escondia.
A expressividade dsse tipo de solução é essencial pois, assim como acontece com os Dardenne ao menos desde Rosetta, o desejo de proximidade é combinado à vontade de contar uma história. Mas essa proximidade demanda uma construção minuciosa de dramaturgia e credibilidade que Minha Irmã passa longe de ter. Há uma sensível dificuldade em cumprir as oscilações que o próprio filme suscita – perdendo força sempre que vai do francês para o inglês, seja por tirar os atores de uma delicada zona de intimidade, seja por depender de performances bem menos inspiradas, como as de Gillian Anderson e Martin Compston – e alguns dos momentos de cabal importância para o filme, como a já mencionada virada que desmonta o título em português, são apresentados com aleatoriedades pouco críveis. Quando nenhum recuo é possível, qualquer fissura na dramaturgia é amplificada. Poucos pactos são mais frágeis no cinema do que a impressão de realidade.
Nesse sentido, Minha Irmã tromba em problema semelhante ao vivido pelas próprias personagens. Pois tanto Louise, com seu falso irmão, quanto Simon, com a vida que ele inventa para a personagem de Gillian Anderson, dependem vitalmente de uma história bem contada para seguirem em frente com a dignidade que a verdade não parece lhes permitir. Mas quando esses spoilers se equilibram em linhas tão frágeis, o curso da própria vida se encarregará de cortar os fios, impedindo que o teleférico continue a subir e a descer. A estação de esqui se esvazia, os atalhos de sobrevivência seguirão congelados até o ano seguinte, e Simon, Louise e Ursula Meier precisarão ser criativos o suficiente para inventarem novas maneiras de manter esse pacto de ficção tão concreto, no qual aquelas vidas parcamente se estabilizam. No vai-e-vem incessante entre a cidade e a montanha – entre o fundo e o topo; entre a realidade e o desejo – Ursula Meier encontra, nos segundos finais de seu filme, um lugar de justeza: após passar a noite sozinho na estação de esqui já abandonada, Simon toma o teleférico para descer; no meio do trajeto, cruza com Louise, fazendo o sentido contrário. Naquele breve encontro de desencontro, de desejo, em que a cabine do teleférico lentamente se afasta do ponto de vista do filme, Minha Irmã parece enfim encontrar seu lugar. Naquela rápida suspensão, algo escapa ao controle do filme, dragado por essa força autônoma e contrária que suga tudo para as profundidades da tela. Há, enfim, possibilidade de cinema.