Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2010.
Em círculos
Somewhere começa com um plano que mostra um trecho de uma pista de corrida de carros de formato circular. Ouvimos um carro vindo de fora do quadro, até ele entrar na única curva visível e, em seguida, sumir da imagem e voltar a existir somente pelo som. A cena permanece fixa, esticada por alguns minutos, enquanto o carro dá volta, e mais volta, e mais volta. Após alguns minutos, o carro é estacionado, e dele sai Johnny Marco (Stephen Dorff), que pára no quadro sem demonstrar intenção de ir a qualquer outro lugar.
Não é exagero dizer que Somewhere está todo resolvido neste primeiro plano. Estilisticamente, já temos apresentados todos os principais recursos adotados por Sofia Coppola neste filme: planos longos e estáticos; uma encenação lacunar (vemos apenas parte da pista) que usa a repetição e a musicalidade da mise en scéne para manter uma pulsação interna; a cena pensada como uma redoma que é constantemente pressionada pelo fora-de-quadro (no caso, o ruído do motor); uma palheta esmaecida, bastante distante da perfurmaria de Maria Antonieta (2006) e Virgens Suicidas (1999), e mesmo das luzes vibrantes de Encontros e Desencontros (2003). E narrativamente, também já está tudo ali: uma estória sobre um sujeito que gira em círculos, aproveitando a potência do próprio motor, mas que não sabe exatamente o que fazer quando desliga o carro e põe os pés no chão. O que veremos, em sequência, é basicamente uma repetição, cena após cena, desse mesmo padrão, em um filme que nunca parece ter força para se libertar de sua conjuntura centrípeda.
Ao contrário, Somewhere é um filme de potência – e não de força – como se cada cena pisasse um pouco mais fundo no acelerador, mas lhe faltasse a decisão de engatar a primeira marcha para sair, de fato, do lugar. É um filme que parece correr toda sua duração aguardando o momento de começar. Essa impotência cinematográfica, porém, é questão narrativa: Johnny Marco é um ator hollywoodiano de sucesso, e é justamente esse sucesso que o condenará à imobilidade emocional, familiar, pessoal e mesmo profissional. Sua vida se reduziu a cumprir os horários marcados por sua agente, gastar dinheiro de forma inconsequente, e levar desconhecidas para a cama. Sofia Coppola se firma, aqui, como uma curiosíssima cronista dos afetos e neuroses que circulam e morrem no universo das celebridades. Somewhere seria o embarque no humanismo providencial e calhorda que olha nos olhos de todas aquelas figuras de cera e cetim e diz: há, por trás dos rostos remendados pelas cirurgias plásticas e coberto por toda essa maquiagem, uma pessoa como cada um de nós da platéia, com as mesmas carências, os mesmos sentimentos e a mesma necessidade primária de ser amado de verdade. Será?
Somewhere poderia de fato ser tudo isso, se não fosse uma evidente refilmagem de Encontros e Desencontros. Se, no filme de 2003, Bob Harris (Bill Murray) – lembremos, um ator de sucesso acometido de uma enorme insatisfação pessoal e profissional – encontraria a saída de sua leve depressão na solidão compartilhada de uma mulher mais jovem (Charlotte, personagem de Scarlett Johansson), é exatamente a mesma coisa que acontecerá com Johnny e a personagem de Elle Fanning – com a única diferença de, aqui, a relação paternal ser também de sangue. Enquanto as personagens de Encontros e Desencontros se conheciam em um hotel – o não-lugar absoluto – em Tóquio, Johnny Marco mora em um hotel em Hollywood. Se, em Encontros e Desencontros, Charlotte preparava Bob para a compra do Porsche que sacramentaria sua crise de meia-idade, Johnny termina a projeção dirigindo uma Ferrari que tem forte poder simbólico no filme.
Mas, mais do que meros correspondentes narrativos, Somewhere parece ser de fato uma recriação plano a plano de Encontros e Desencontros: as gêmeas em pole dancing sincronizado e a prostituta mandada como presente ao quarto de hotel de Bill Murray; o constrangimento na premiação da Telegatto e o programa de televisão japonês; o karaokê e as partidas de Rock Band; a paixão que observava Scarlett Johansson de peruca rosa, encarnando Chrissie Hynde na interpretação de “Brass in Pocket”, e o amor que aflora com um número de patinação de Elle Fanning (que nos lembra o formato circular do primeiro plano e que é predominante em todo o filme, mas que aqui esbanja uma graciosidade que inexiste na dureza do Porsche); os corpos deitados lado a lado na cama de um quarto de hotel, e os corpos estirados lado a lado em duas espreguiçadeiras à beira da piscina; etc, etc, etc.
Não há humanismo possível quando um mesmo universo olhado passa a ser trabalhado como produção em série. Se sentimos franca empatia pela personagem de Johnny Marco – e uma das coisas mais impressionantes de Somewhere é o quanto a rarefação quase total de narrativa, os planos longos e a própria calhordice do protagonista conseguem, ainda assim, conquistar e manter o espectador em comunhão com tudo aquilo até o fim – essa empatia é de outra ordem. Afinal, já vimos essa estória antes, já sabemos como ela acaba – e aqui a cena do cochicho inaudito é substituída por uma ainda mais trágica: ouvimos o que Johnny Marco diz para sua filha, mas o barulho do helicóptero impede que ela o ouça – e a repetição sistemática de uma rotina narrativa (no caso de Somewhere, tão linear na relação crescente entre pai e filha, quanto modular em sua repetição) faz apenas evidenciar que as questões de Sofia Coppola são outras.
Pois Somewhere retoma Encontros e Desencontros para afirmar que o coração do filme não era, exatamente, a estória daquelas duas personagens. Ao banalizar a narrativa, Sofia Coppola chama atenção ao que havia de realmente memorável em sua obra-prima: a arquitetura precisa de pequenos momentos de intimidade; a condensação atenta de uma certa sensibilidade contemporânea; a dedicação irrepreensível ao filmar duas pessoas conversando (como vemos nas inspiradíssimas trocas entre Elle Fanning e Chris Pontius – mais conhecido como o Party Boy da série Jackass); o talento raro de criar imagens que condensam, em sua composição gráfica e semântica, o sentimento que as palavras não conseguem exprimir – e em Somewhere há ao menos dois momentos dignos de antologia nesse sentido: o já citado plano das cadeiras à beira da piscina; e o helicóptero estacionado frente à falsidade real do skyline de Las Vegas. Somewhere é praticamente todo dedicado à sua própria orquestração interna, sem com isso se perder em um abismo estético. De toda a artificialidade do filme e do universo filmado, Sofia Coppola consegue produzir uma vida tão palpável que é capaz de convencer que o cinema não poderia ter função mais nobre do que simplesmente registrá-la.
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