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The Beguiled (2017), Sofia Coppola

Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2017.

Festival de Cannes, 2006. Sofia Coppola, à altura ainda trajando os louros de nova auteur pelo sucesso estrondoso de Encontros e Desencontros (2003), aporta no tapete vermelho com uma bomba-relógio sob o vestido. Dali a duas horas, Maria Antonieta – seu extraordinário terceiro longa-metragem – conquistaria lugar para todo o sempre nos inventários de incompreensão acrítica da grande imprensa: “11 filmes que foram vaiados em Cannes”, listou o Telegraph dez anos depois; “A França diz ‘non’ a Marie-Antoinette”, escreveu, malandramente, o today.com; uma “proto-Euro Disney transformada em rave”, ironizou Manohla Dargis, no New York Times.

Ninguém monta uma bomba-relógio inocentemente. Em especial, uma que custa 40 milhões de dólares – até hoje, o maior orçamento da carreira da diretora. Maria Antonieta era uma megaoperação para afirmar uma outra via possível para a relação entre o cinema e a História. Das guitarras cortantes de “Natural’s Not in It” sobre créditos cintilantes, atados ao andamento roboticamente tribal da canção do Gang of Four, à imagem do palácio de Versalhes destruído pela turba fora de quadro que fechava o filme, Sofia Coppola propunha nada menos que uma nova sensibilidade historiográfica (pós-moderna, alguns diriam), resumida na letra da canção: “The problem of leisure / What to do for pleasure / Ideal love a new purchase / A market of the senses”, ou, “A questão do lazer / O que fazer por prazer / Amor ideal, uma nova compra / Um mercado dos sentidos”. As experiências substituiriam os monumentos; o extraordinário seria examinado pela ótica do comum; o passado estava à mostra nos vestígios do presente; o ócio suplantaria a curiosidade exploratória dos velhos conquistadores: “e se pudéssemos propor um imperialismo que não precise sair do divã?”, diz a piscada de olho de Kirsten Dunst. A afirmação era categórica: vivemos no Novo Mundo. O Novo, em 2006, não pedia nada muito diferente das reivindicações de François Truffaut algumas décadas antes, em seu manifesto contra o “cinema francês de qualidade”. No balneário de Cannes, os Estados Unidos outra vez desembarcavam como alternativa à França.

Maria Antonieta (2006), Sofia Coppola

A bomba estourou, mas poucos ouviram.

A boa recepção por revistas francesas com a tradição de Positif (“um filme intimista e estilizado dentro do formato restritivo das super-produções históricas”) e Cahiers du Cinéma (onde Jean Michel Frodon – não exatamente o crítico mais rigoroso da história da revista – conferiu ao filme um tratamento exemplarmente autorista) fez pouco para apagar o desconcerto histórico. O julgamento de Maria Antonieta viria do povo, e, em 2006, a grande imprensa ainda se autodeclarava sua porta-voz: aquele filme – ponte possível entre Paisà (1964) e I’m Not There (2007), de presença altiva em um ano em que Cannes trazia declarações tão agudas sobre o cinema e a História quanto Juventude em Marcha, Flanders e O Crocodilo – já nascia soterrado pelos rumores das vaias. A Palma, naturalmente, iria para Ken Loach.

Festival de Cannes, 2017. Sofia Coppola retorna com O Estranho que Nós Amamos (The Beguiled, no original), ao mesmo tempo uma refilmagem do longa homônimo de Don Siegel (1971) – um dos melhores filmes de uma das melhores décadas do cinema industrial americano – e uma nova adaptação do romance de Thomas P. Cullinan, originalmente intitulado A Painted Devil (a tradução literal para o português, “o diabo pintado”, adiciona bem-vinda dose de duplo sentido à fábula de gênero). É sua primeira adaptação literária de fôlego desde Maria Antonieta. Nos anos anteriores, a diretora tateou diferentes estratégias para expurgar o ressentimento contraído naquele mesmo tapete vermelho – ressentimento ainda mais compreensível em um mundo que reafirma o cinema como um perverso clube de “cavalheiros” (e Sofia, primeira mulher norte-americana a ganhar um Oscar de roteiro original, sabia disso muito bem). Primeiro, apostou no serialismo e refez seu grande sucesso de 2003, com o belo e melancólico Um Lugar Qualquer (2010). Em seguida, voltou à perplexidade propositiva diante do estado das coisas com Bling Ring – A Gangue de Hollywood (2013) – um grande manancial de assuntos interessantes tirados de um artigo da Vanity Fair, mas por algum motivo incapaz de se fixar na memória do espectador. Quente como o sol do presente, Bling Ring trouxe Sofia de volta à Croisette, mas “rebaixada” para a (frequentemente mais interessante) Un Certain Regard.

De volta à Competição Oficial, ao lado de duas de suas mais marcantes colaboradoras – Kirsten Dunst (de As Virgens Suicidas, de 2000, e Maria Antonieta) e Elle Fanning (de Um Lugar Qualquer) – Sofia Coppola sabe que seu filme encontrará um mundo muito diferente daquele que trazia nas mãos o sangue de sua Maria Antonieta. A imprensa, encarnada em flashes intermitentes curvados diante das estrelas, bate cabeça para repercutir o burburinho caótico do novo arauto do povo: as redes sociais. “E como se posicionar diante de um filme antes que ele passe pelo termômetro das redes?”, pensa um repórter, a rabiscar arabescos em seu caderninho. “Terei, eu, que dizer o que sinto?”.

The Beguiled (2017)

Diferente do repórter, Sofia sabe algumas coisas sobre novos mundos. Sabe, por exemplo, que a bomba não precisa mais ficar escondida. Ao contrário: em época em que reagir primeiro se tornou sinônimo de reagir melhor, é fundamental que a repercussão da bomba comece muito antes de ela explodir, colocando todas as fichas do aparato midiático na tarefa de pré-alinhar o senso comum que será produzido sobre o filme antes mesmo de sua primeira exibição. Sabe, ainda, que a bomba sequer precisa ter pólvora; basta ser alardeada como bomba – afinal, se isso funcionara tão bem contra Maria Antonieta, por que não funcionaria agora, a favor? Se, naquela época, assistir ao filme não tinha sido suficiente para colocar em crise o contexto de onde ele emergia e ao qual se referia, a reação ideal passa por criar um contexto sem crises, que, de tão forte, torne o filme secundário… uma espécie de contra-contrabando, invertendo a clássica definição de Luc Moullet: vender (água com) açúcar como se fosse cocaína.

Sob a densa fumaça de pó branco que flutua feito confete, o filme começa. Sofia Coppola, que conhece como poucos as maneiras de se retirar expressividade íntima das paredes frias de um palácio, aponta a câmera para a Casa Grande de uma plantation no Sul dos Estados Unidos. Novamente, o olhar da diretora – uma entusiasmada decadentista – recai sobre a ruína de um modo de vida. O Sul escravocrata dos Estados Unidos se colocara em guerra contra a União, no esforço de manutenção de privilégios erigidos com o sangue dos explorados. Um soldado da União é encontrado ferido sob uma árvore na propriedade de uma escola para moças em Virginia, estado alinhado aos Confederados. As moças levam-no para dentro de casa e, em vez de entregá-lo às tropas sulistas, supervisionam, com curiosidade que mistura a pulsão de alteridade com o medo dos rumores programaticamente espalhados, sua recuperação.

À porta do soldado ferido.

Surge daí um jogo que reproduz as dinâmicas de poder da sociedade escravocrata ali em desmonte: uma vez que o soldado da União esteja bem o suficiente para se locomover e abandonar a plantation – recuperação que ele garante com um perverso jogo de sedução –, as moças colaborarão para a manutenção programática de sua dependência, repetindo, hegelianamente, a dinâmica de poder à qual estavam habituadas. O poder, afinal, vicia; old habits die hard. O soldado do Norte, representante do projeto civilizacional norte-americano como hoje conhecemos, era promessa de progresso sedutora, mas que se mostrava passageira, pois calcada na propaganda de sua própria autonomia. Também por ter, sob o frondoso uniforme, a contradição de todo projeto civilizacional: um projeto de controle. Uma vez caídas as máscaras, as sinhás fazem o que tinham o costume de fazer: procuram aquele que parecia mais fraco, mesmo que apenas momentaneamente, para tornar a exercitar o poder que mantinha o casarão de pé. Fariam isso até o fim, nem que fosse necessário fabricar essa fraqueza, assumindo a barbárie que mantém as roupas limpas. A partida das pessoas escravizadas não seria suficiente para apagar uma estrutura viciada no poder, que o tempo obrigara a se pôr dormente, à espera de nova oportunidade. O problema não era pessoal; era um problema da própria estrutura.

Ao menos, era essa a moral da fábula – estruturada como uma canção folk tradicional, com toda a perversidade fundadora e o misticismo delirante da cultura moderna norte-americana – sobre a História iminente rememorada no filme de Don Siegel…

Aqui, porém, todo esse contexto é convenientemente varrido com a secura de uma fala explicativa, colocada na boca de uma das personagens mais jovens do filme, Amy (Oona Lawrence): “os escravos já foram embora”. É tudo questão de saber escolher os cogumelos certos, deixando de fora aqueles que possam ameaçar a integridade do projeto. E, principalmente, declarar isso, em alto e bom tom. Afinal, dizer na coletiva de imprensa no dia seguinte à primeira exibição de Maria Antonieta que a dinâmica política não era o seu foco não parecia ter sido suficiente para livrar Sofia do coro dos boçais – em parte, por a afirmação ser falsa: o filme era profundamente político.

Mas como a estratégia, hoje, é de jogar o jogo desejado pelo inimigo do passado – este estranho que nós amamos – é necessário falar língua que ele entenda e empurrá-la pela garganta, até sufocar, com malas de dinheiro: às redes, a publicidade. Em tempos de cobiça pelo cafuné da autoconfirmação, que abandona a fobia da zona de conforto em nome da tranquilidade fabricada dos “safe spaces”, é preciso que o filme se anuncie como político, mas de fato não o seja. Um filme político é sempre uma espécie de confronto, e o confronto é uma bomba que realmente corre o risco de explodir. Ninguém quer manchar de sangue o próprio computador.

Ao escaldado, convém antecipar: desde anunciado o projeto, Sofia Coppola deixou muito claro que sua intenção era isolar o gênero biológico e rever a história por uma ótica feminina (desde que isso não inclua as mulheres escravizadas – convenientemente varridas do filme com o aval da perversão imperialista que inverte a noção de “lugar de fala”), resgatando a abordagem perspectivista do eu-lírico do romance original. Para o juízo do novo arauto do povo, era o suficiente: palavras-chave de clareza exemplar, que escancaram a justeza pré-aprovada de posicionamento e circunscrevem o campo de atuação do filme a um jogo que já começa ganho. Sendo a estratégia bem-sucedida em propagandear sua adesão ao “lado certo”, O Estranho… poderia valer-se do benefício social de ser secundário: um filme que nem precisa ser filme, pois já nasce “visto”. Nos últimos anos, a insignificância programática da obra perante a relevância do contexto revelou-se o caminho certo para os louros.

Dentro do cinema, porém – enquanto as primeiras imagens perversamente bucólicas se abrem na tela feito uma janela – a promessa encontra outro lastro: a ideia de Sofia Coppola não só parecia ótima; ela já havia rendido ao menos um belo filme no passado:

As Virgens Suicidas (1999), Sofia Coppola

Em As Virgens Suicidas (1999), a diretora pegava o romance voyeurístico de Jeffrey Eugenides, mantinha o eu-lírico masculino que cobiçava o entendimento (logo o domínio) do espaço circunscrito (literalmente) para as mulheres, mas solapava sua autoridade com uma camada de assombro que vinha justamente da facilidade de trânsito da câmera por essa casa interdita ao binóculo – imagem que, como bem observou Raul Arthuso, teria sentido invertido na luneta de O Estranho… – esse campo sensível habitado (e progressivamente abandonado) por Lux, Mary, Therese, Bonnie e Cecilia. “Obviamente, doutor, você nunca foi uma garota de 13 anos”, dizia Cecilia (Hanna Hall) ao médico, intrigado com o desejo suicida da jovem paciente – um “obviamente” potencializado pela tensão entre o mundo desejado pelo narrador e a impossibilidade de ele dominá-lo. A voz over evocava um detetive noir a narrar seu próprio fracasso (“Cecilia foi a primeira a morrer”, anunciava, de partida, o fiasco – a primeira de muitas, a primeira de todas), escancarado pela adesão irrestrita da câmera a Lux, personagem de Kirsten Dunst: vejo, examino, me aproximo, e ainda assim tudo me escapa. Sofia se voluntariava como guardiã desse mistério justamente ao afirmar sua autonomia e inviolabilidade, vendo através do vestido para cumprir a fantasia masculina do nome escrito na calcinha, mas deixando claro que somente a sua câmera, e a de mais ninguém, consegue se mesclar aos tecidos. Anos depois, Lux voltaria como Maria Antonieta, e sua piscadela mirando o íntimo da objetiva (o nosso íntimo) entoava o mesmo refrão: “você não tem a menor chance”.

O Estranho que Nós Amamos era a oportunidade perfeita para uma nova dobra nesse projeto de cinema refinado entre As Virgens Suicidas e Um Lugar Qualquer, e que parecia ter descarrilado no sensacionalismo autoconsciente (ou na autoconsciência sensacionalista) de Bling Ring. Analisando a premissa, percebe-se que estão lá a potência do confinamento; a relação permanentemente dinâmica entre as personagens, gerando uma cisão profunda entre texto e subtexto; a pressão de um contexto político específico a forçar as portas do palácio; o décor como inventário de texturas emocionais; o quadro como arena de troca de olhares; a cena como lugar onde se manifesta, permanentemente, o indizível cotidiano, profano, dessacralizado…

Mas o filme começa e rapidamente se afirma briefado a ser contrário. Os espaços onde ressoam a intimidade são aterrados por dinâmicas demonstrativas; os duelos de olhares – ao mesmo tempo sedução e praga – se desfazem na montagem apressada; o contexto é literalmente feito fumaça; o confinamento parece desprovido da abundância do tempo, e Sofia Coppola, grande artífice do subtexto, faz um filme do texto – mas não um filme da palavra, como Manoel de Oliveira, Eduardo Coutinho, Danièle Huillet ou Jean-Marie Straub. Seria um desafio, se não fosse primário: o subtexto se escancara como informação; o drama, como indicação: as cenas não precisam acontecer de fato, pois parte da estratégia aqui é focar na comunicação clara e desambígua do presente que o condena. Drama é ruído, é fissura, é desejo, e, para a lógica de 2017, essas são palavras indesejadas.

A Guerra Civil vira fumaça

“As redes sociais propõem uma interação social que não é realmente social”, escreveu o músico e escritor David Byrne em artigo recente para a Technology Review. “Embora Facebook e cia digam que oferecem possibilidades de conexão – e de fato oferecem a aparência de conexão – na realidade grande parte das redes sociais é apenas uma simulação de uma conexão real. (…) Para a mentalidade de um engenheiro, a interação humana é frequentemente percebida como complicada, ineficiente, ruidosa e lenta. Para eliminar a fricção de um processo, é necessário retirar o componente humano do caminho”. O Estranho que Nós Amamos traz indicadores de desejo – latente em Nicole Kidman, grifado em Elle Fanning – mas não desejo de fato: é um filme desencarnado, automatizado, robótico, a se estufar com soja e serragem no balcão do açougue. É, como aponta o raciocínio de engenheiro esboçado por Byrne, um filme inadvertidamente inumano. Começa, aí, sua narrativa de sucesso.

O trajeto até lá, porém, precisa ser cuidadosamente preparado. Afinal, no médio prazo, Maria Antonieta teve papel importante na vitória de algumas batalhas. A mais notável delas se dava justamente no campo historiográfico: o filme propunha encarar o passado como um espaço de livre apropriação, cujos signos pudessem ser repensados e recolocados em função do presente, reanimando a relação com a História e assumindo o anacronismo como força criativa. Maria Antonieta não era um filme histórico sobre o passado, nem sobre o presente, mas sobre o cinema histórico em si. Não era um filme preocupado em ser justo, pois era um filme ocupado com ser vivo. Sua realização captava as vibrações de um hoje que carregava o Velho Mundo como um fardo, e o filme se oferecia como um novo ethos possível, capaz de roer-lhe os ossos como um batalhão de cupins.

A História por Maria Antonieta

Três anos antes, esse desejo geracional de virar a nau da História havia sido resumido no paradigmático e problemático livro Movie Mutations (2003), editado por Jonathan Rosenbaum e Adrian Martin. No livro, uma autoproclamada nova geração da crítica de cinema transformava em manifesto o pensamento provisório de um conjunto de cartas (algumas delas, muito interessantes), complementando-as com artigos sobre alguns autores-chaves para esta nova sensibilidade. Em um deles, Kent Jones toma Tsai Ming-liang como MacGuffin para formalizar uma nova proposta historiográfica, destinada a ocupar o espaço que até então cartografara o mundo como uma grade de cinematografias nacionais, e que vinculava o estudo e compreensão de um filme ao conhecimento do contexto social, político e cultural do lugar onde fora feito: “A velha platitude do significado universal foi substituída pela nova platitude do significado local, na qual ramificações da história nacional e regional pesam sobre cada filme, a ponto de enterrá-los”, escreveu Jones. A irreverência de Maria Antonieta – como a geração Movie Mutations, um filme ninado por headphones e cintilações de televisão – reforçava a justa afirmação política de libertar-se da história como peso, para poder redescobri-la como canvas.

Mas, como uma festa que dura demais, o ritual de autoliberação aos poucos se condensou em onanismo: entre livrar-se do peso da história e fingir que ela nunca aconteceu, impõem-se, paradoxalmente, as distâncias de um passo e de um oceano. São medidas radicalmente diferentes, mas que aparentam igualmente inconsequentes para quem acredita que a Terra é plana. Dez anos depois, com toda uma geração formada e deformada nesse paradigma do desconhecimento, o resultado da inflamação autocelebratória encontra uma tradução já bastante decodificável na parte final de O Estranho que Nós Amamos: a catarse. Aos poucos, aquele jogo de olhares mambembe – e há algo errado, profundamente errado, quando Yorgos Lanthimos extrai atuações mais dignas de Colin Farrell e Nicole Kidman do que Sofia Coppola – se desfaz em comédia de erros e, no momento seguinte, em escada de horror. O filme, que até então rilhava uma ideia primária de classicismo, encontra força muito maior na fisicalidade do terço final, quando aquele complô vaporoso de dubiedades ganha corpo(s), perde membros, e o sangue, enfim, promete jorrar. A despeito do esforço do pacto contemporâneo em dizer o contrário, não há carne sem sacrifício.

Importa pouco que o ritmo aberrante leve o espectador diretamente ao quinto degrau da escada, depois de uma longa demonstração de sua inabilidade em construir os quatro primeiros. Na verdade, aí reside certo fascínio, mesmo que mórbido: a promessa de um pay off que prescinde de um set up é a lacração feita mise-en-scène, e que ela funcione, no filme, reforça sua força-motriz, seu endereçamento não como um filme “de hoje”, mas sim como um filme “para hoje”. Na lógica gender first alardeada durante a produção, a catarse se dá na adesão a um ponto-de-vista que é, ao mesmo tempo, específico e generalista: na cena do banquete, sabemos bem que não estamos na pele de Edwina (Kirsten Dunst) nem, certamente, na de McBurney (Colin Farrell, que no filme tem destacada sua sugestiva ocupação antes de seu nome: Corporal, função militar mas também adjetivo arcaico relativo a “corpo”, como no português), pois sabemos mais do que eles; ao mesmo tempo, não estamos exatamente na pele de qualquer uma das outras moças, mas sim na não-pele de todas elas, habitando uma espécie de consciência coletiva que aguarda pelos efeitos do veneno plantado no prato do militar. Esse recurso, profundamente hitchcockiano, de colocar o espectador um pouco à frente de alguns dos personagens, é a manivela de suspense que alimenta a catarse. Quando McBurney, o macho amputado, morre sobre o jantar, sabemos que não há razões para lágrimas. A mensagem foi alta e clara.

A Terra, porém, não é plana e a História é muito mais do que uma inconveniência que se descarta no presente: este não é, afinal, um uniforme qualquer. A morte celebrada é o sacrifício de um projeto político – o Novo Ocidente progressista, que nunca deixou de ser branco, misógino e imperialista, ou mesmo mercenário, como o filme especula – exposto, aqui, como troféu no plano final do filme, em frente à grade da casa. Pela lógica gender first usada como escudo por Sofia Coppola, o filme se alinharia à revanche inadiável de Corra! (2017), de Jordan Peele, compartilhando seu alvo: um projeto supostamente civilizacional cujas engrenagens seguem funcionando ao custo do sangue derramado, concentrando o poder em velhas mãos que jamais se cansam.

Seria justo, não fosse a inconveniência da especificidade histórica de todo o cenário: estas tampouco são mulheres quaisquer, esta não é uma casa qualquer, esta não é uma grade qualquer; este é o palco simbólico por excelência da Guerra Civil norte-americana, que tinha projetos igualmente definidos em ambos os lados da linha de batalha. Nesta arena, o extracampo do final do filme só pode ser um: os soldados confederados voltando à casa e dando de cara com a bela surpresa do corpo da América porvir, em revanche pela estátua derrubada na praça de Durham, a cerca de duas horas dali. Quem vence são os senhores e senhoras de escravos e, pela catarse construída, o espectador é feito cúmplice.

Ao se vingar do soldado yankee canastrão e oportunista – não tão canastrão e oportunista quanto no filme de Siegel, diga-se – O Estranho que Nós Amamos propõe uma catarse que tripudia a insuficiência do projeto da América moderna em nome da manutenção de um status quo que era historicamente escravista, genocida e conservador. Pior: um projeto não só vivo, mas em plena ascensão, e que aqui ganha contornos renascentistas, em uma espécie de Francisca (1981) às avessas. O gozo, no caso, não é a vingança libertária, mesmo que problemática, como em Django Livre (2012) ou Corra! (se é que há gozo, no filme de Jordan Peele); ele é o gozo de Charlottesville, da Supremacia Branca, da manutenção de privilégios que, no contexto do filme, insurgia literalmente contra os avanços civilizacionais para os quais rumava, mesmo que claudicante, o país.

É, portanto, o filme perfeito para 2017: um projeto conservador mal delineado, que estampa aparência de justiçamento progressista e que só funciona porque finge eliminar o contexto jamais eliminável, ignora a complexidade dos atores envolvidos, e aplaina o sentido de consequência histórica… mas traz, ao final, a recompensa a si mesmo por ser quem é, desimplicando-se do processo histórico, pois esse processo há muito já foi convertido em um “mercado dos sentidos”. Quando a História foi feita abstração e a vitória da plantation é celebrada como tardia revanche social de um gênero oprimido que tem todo o direito de desejar vingança, a ignorância programática se faz sofisticada máquina de cooptação. O quase absoluto silêncio crítico a esse respeito – que, mesmo com todo o timing que lhe é inconveniente, deixa a política de encenação por conta dos veículos militantes – é de gelar a espinha. Enquanto saía do cinema, recebia, pelo celular, a notícia de que a militante Heather Heyer havia sido assassinada por protestar contra uma manifestação de Supremacistas Brancos, em Charlottesville.

É fundamental mergulhar nas contradições que habitam a Casa Grande. Há muitos filmes potentes plainando neste espaço, de Santiago (2007) a Aquarius (2016), de O Leopardo (1963) a… Maria Antonieta. Era essa a contribuição de Sofia ao passado, outrora movie child que conhece de trás pra frente a intimidade do privilégio, e que se somava à monumental contribuição ao futuro trazida por toda aquela sinfonia de cores, peles e confeitos. Mas havia, no filme de 2006, uma justeza inegociável: nos perderíamos pelos corredores do palácio, sentiríamos o calor da cama da rainha, quiçá choraríamos por sua abastada solidão, mas, ao final, era igualmente necessário lidar com a certeza de que a cabeça de Maria Antonieta iria rolar. Em O Estranho que Nós Amamos, Sofia Coppola transforma essa nesga de empatia em uma verdadeira revanche das sinhás. E recebe, nessa desrazão, os louros de um presente que há muito não se entende passado, pois sabe que aquiescer ao tempo é ter de admitir-se parte, e não centro, de uma História que seria mais conveniente simplesmente ignorar.

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