Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2011.
A vida lá fora
Plataforma, segundo filme do cineasta chinês Jia Zhang-ke, talvez tenha sido o filme mais recente a restaurar, com alguma unanimidade, uma idéia de cinema político. Muito como Elia Suleiman – diretor palestino que parece ganhar o rótulo de “político” mais por sua origem do que por suas operações artísticas – Jia Zhang-ke era alvo fácil: um cineasta jovem nascido na China continental, que busca um diálogo direto com a história de sua terra, mas que – em alguns casos, por censura direta – não consegue que suas obras circulem dentro de seu próprio país. Como o país em questão é a China, os automatismos são ainda mais sedutores: Plataforma foi imediatamente tachado como uma barricada anti-globalização; um testemunho da ruína de uma das últimas utopias práticas do século XX; um último grito artístico de real vigor em suposta defesa de uma vivência que definhava diante da chegada do livre mercado.
De fato, Plataforma é um filme de uma eloquência política rara. Mas mesmo à época de seu lançamento (que, a rigor, nunca aconteceu de fato no Rio de Janeiro) já era possível perceber o quanto havia de redutor nessa inflamação esquerdista que se apegava desesperadamente ao filme, usando-o como um colete salva-vidas. Pois a política de Plataforma não está somente em seu tema, mas principalmente em seu tratamento. Em primeiro lugar, o filme é uma proposta de imersão espaço-temporal: os planos são longos, os espaços são amplos, as ações são rarefeitas. Jia Zhang-ke nos coloca a acompanhar personagens que sentem, muito lentamente, a passagem do tempo. É preciso, antes de mais nada, experimentar esse arrastar dos dias, esse tédio que se concentra como vontade de potência naqueles corpos tão jovens, e que são aprisionados pelos limites da própria juventude. É preciso experimentar uma realidade que é tida – pelos espectadores e pelo filme – como diferente da nossa, para que então nos encontremos no que há de igual.
Ao longo da épica jornada do filme, acompanharemos o jovem grupo de artistas sem que intervenções narrativas mais claras sejam necessárias. A dramaturgia em Plataforma expõe as personagens ao tempo para registrar a maneira que o mundo age sobre elas, e a forma que cada sonho é lentamente erodido pelos limites de realidade. Em um primeiro momento, os limites são do próprio funcionamento do regime comunista, que confinava os artistas a temas e preocupações que não eram as suas. Em um segundo, os limites são de mercado: a música pop chega, o grupo de teatro se transforma em uma banda de rock, e o financiamento estatal é substituído pela necessidade muito concreta de se ganhar dinheiro e pagar as contas no fim do mês. Atravessando os anos junto a um grupo de artistas, Jia Zhang-ke filma o paradoxo kantiano em que a grande contradição da arte já se dá na própria posição do artista no mundo capitalista: oferecer algo que não tem valor mensurável para uma sociedade regida por trabalhos valoráveis, e produzir uma beleza impotente diante das contas, números e cifras.
Nesse sentido, seria fácil caracterizar Plataforma como um filme simplesmente desencantado com a própria possibilidade de arte no mundo contemporâneo – já que o problema independe do regime econômico em que se insere – se não fosse, também, um equívoco. Pois se Jia Zhang-ke é um cineasta político, ele o é justamente por seus procedimentos colocarem essa lógica panfletária em curto-circuito. O mundo é terrível, mas os jovens são incríveis e cheios de potência; o sonho de uma garota é exumado em uma dolorosíssima (e deslumbrante) cena de dança solitária que atravessa mais um expediente de desencanto burocrático; um rapaz quer ser vocalista de uma banda de rock, mas aquela realidade lhe é tão distante que ele cumprimenta a platéia com a etiqueta de uma reunião de trabalho; as relações construídas são marcadas pelas dores das perdas, e toda vida que surge (e ela não só surge, como transborda cada plano) está condenada ao aborto contingente e voluntário. Viver é se expor ao desgaste, mas ao mesmo tempo é a possibilidade de povoar o mundo com um imaginário que é só seu – e nesse sentido é expressivo que, em filmes posteriores como O Mundo (2004) e Em Busca da Vida (2006), Jia Zhang-ke colocasse seu apego à realidade em choque com intervenções de ficção científica.
Plataforma é um filme essencialmente político não por tematizar a política, mas por criar choques de sensibilidades conflitantes que obrigam o espectador a questionar suas próprias verdades. O encanto convive com o desencanto, a tristeza convive com a alegria, o sonho convive com a desilusão, o dentro convive com o fora, e ao espectador cabe justamente repensar a aplicação de cada um desses termos – operação definidora e política por excelência. Jia Zhang-ke consegue tudo isso e ainda povoa seu filme com personagens fortes e comoventes, com enquadramentos de uma expressividade rara, com movimentos de câmera capazes de instabilizar e redefinir toda a diegese de uma cena. Mais do que um grande filme político, Plataforma é de fato uma das maiores obras de arte da última década.
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