Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2017.
A imagem em jogo
O Inquilino (2010) é uma das obras co-dirigidas pelo cineasta Cao Guimarães com a artista visual Rivane Neuenschwander – parceria que inclui também trabalhos como Quarta-feira de Cinzas (2006) e a obra-irmã Sopro (2000). A diferença de titulação é proposital, senão propositiva: Cao Guimarães tem como marca de sua trajetória um trânsito entre a galeria e a sala de cinema – inclusive com uma produção frequente (e de altos e baixos) em longa-metragem; já Neuenschwander tem, no vídeo, matéria de uma fração delimitada de sua obra para museu, que passa também pelo readymade (a apropriação de objetos cotidianos) e pela instalação.
Essa diferença de ponto de partida só é relevante por ilustrar o lugar privilegiado entre o cinema e o museu que O Inquilino se propõe a ocupar. Da produção à exibição, o filme (filme?) estampa as contradições, perdas e ganhos de um encontro fértil e razoavelmente recente entre as duas instituições, que desestabiliza produtivamente o universo das imagens em movimento. Em vez de se esquivarem desse campo de batalha, Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander dão forma a esse conflito, expondo a cisão geradora na própria constituição da obra: uma anunciação em big bang.
Esse imperativo de auto-reflexividade, muito atento a tempos conceituais, cabe em uma sinopse: a câmera acompanha uma bolha de sabão que vaga pelos cômodos fechados de um apartamento vazio. Só. A aparente simplicidade, porém, é suficiente para disparar projeções e espelhamentos que permitem que os dez minutos extrapolem os limites espaciais e temporais – diegéticos ou não – tão claramente estabelecidos por esse esquema prévio.
O filme, aqui, não é o filme. Embora ele esteja disponível, é possível que essa simples descrição seja suficiente para projetar a leitura, dispensando que ele sequer seja visto – e embora essa afirmação raramente se aplique a grandes obras de cinema, é possível encher uma banheira com todas os cânones da arte contemporâneas que se acomodam tranquilamente sob uma descrição.
Por outro lado, embora assistir ao filme seja secundário, paradoxalmente, uma vez que decidimos assisti-lo, ou que o assistimos sem antes decidir, flanando pelos corredores de um museu, o “como” e o “onde” passam a fazer toda a diferença.
(Mas aqui uma outra porta chama a atenção e, antes de entrar neste cômodo, a bolha decide passear por um outro lugar).
– Localização
“Uma bolha de sabão que vaga pelos cômodos fechados de um apartamento vazio”.
A arquitetura fundamenta a trincheira em que se instala O Inquilino, justo por ter sido tão frequentemente usada na descrição deste campo de encontros, sangrentos ou não: a “sala escura” (o cinema) versus o “cubo branco” (a galeria). Aqui, os quartos não são câmara escura ou clara, mas uma espécie de fundo, animado e colorido pela padronagem dos azulejos ou pelas notícias de jornais que forram o chão. Esse fundo se desenrola por trás do círculo transparente demarcado pela bolha, “fixo” no centro do quadro – na medida em que uma bolha se permite fixar como centro de qualquer coisa – como o proto-cinema da paisagem a escorrer pela janela de um trem, devidamente evocado na viagem pintada de Carta de uma Desconhecida (1948), de Max Ophüls.
A paisagem sem janelas, porém, quando não beira a abstração, mantém-se indeterminada: um corredor de paredes brancas pode de repente dar lugar a um quarto cor-de-rosa, que rapidamente deixa de ser um quarto e se torna apenas rosa… e, quando volta a ser quarto, continua sendo um espaço qualquer, em um limbo entre o uso e o não-uso, entre o lugar e o não-lugar, entre a ociosidade e a ocupação.
Mais do que um filme ou uma videoinstalação, O Inquilino é sobretudo um jogo. A partir de um conjunto enxuto de regras, espectador e obra são convidados à interação, em um exercício de projeções que é disparado e refletido pelo filme: uma imagem projetada gera um pensamento que é projetado de volta sobre a imagem, que, por sua vez, o rebate, e assim sucessivamente. Assistir a O Inquilino é se entregar a um pingue-pongue dos sentidos, e o prazer proporcionado pelo filme se nutre dessa espécie de auto-finalidade que lhe é, paradoxalmente, externa: o filme tem como fim produzir um sem-fim que não cabe ou acaba em si… entretenimento, enfim, de uma outra natureza.
E assim, de súbito, o museu é feito parque.
(E ao espectador que assim desejar, cabe ainda um sem-mundo de relações entre os museus e os parques, e a lembrança de que, como esmiuçou Jonathan Crary em seu Técnicas do Observador, a economia de atenção dos museus substitui a baixa exuberância das feiras e dos carnavais, e surge concomitante aos parques de diversão; que o cinema tem papel fundamental nessa virada – embora, no começo, se parecesse mais com as feiras do que com os museus; e que ambos os regimes se inscrevem em uma tradição de policiamento dos corpos – até que a bolha quase se choca contra uma parede, o frio na espinha pelo fino tirado reconcilia essas diferentes economias de atenção e, atenção, melhor voltar a prestar atenção no filme).
– Nome
Esse pingue-pongue já começa pelo título: um inquilino é não só um intruso, alguém que ocupa um espaço que não o pertence, mas também um ser fincado no tempo… alguém que encarna um contrato de existência temporária, provisória, em vias de acabar – mesmo que não se saiba exatamente quando. É, portanto, palavra que carrega igualmente uma dimensão espacial específica, e uma dimensão temporal difusa, embora determinada.
Essa dupla condição permite uma outra camada de auto-reflexividade – no caso, da relação do cinema com o museu, esse espaço que passou a receber a imagem em movimento há relativamente pouco tempo, estabelecendo uma relação ainda calcada em instabilidade, em imprevisível e permanente negociação. “Embora pouco explorada dentro dos Estudos de Cinema”, escreveu Erika Balsom no fundamental Exhibiting Cinema in Contemporary Art, “essa explosão da imagem em movimento na arte contemporânea constitui território de suma importância onde noções de cinema têm sido renegociadas e redefinidas nas últimas décadas. (…) como a integração progressiva do cinema à galeria e ao museu muda nossa concepção a seu respeito?”.
As respostas são longas, mesmo quando o filme é curto. Embora, narrativamente, todos os elementos de O Inquilino sejam facilmente acomodados em um link de internet, essa instabilidade institucional se instala entre a obra e o espectador quando visto, por exemplo, na Galeria Lago, em Inhotim, onde está em exibição temporária como parte da exposição Light. Projetado em loop, o filme recebe ao espectador sem dar-lhe consciência imediata de um começo – e quem chega mal sabe que o filme começa do meio, de uma espécie de tempo qualquer – e de um fim – e só quem espera entenderá que o filme termina, de certa forma, como começou, em qualquer lugar. Há, portanto, uma irreverência primeira aos marcos narrativos tradicionais – começo, meio e fim – que se tornaram convenção para a experiência da sala de cinema, e que abraça a temporalidade de um espectador tão flâneur quanto o protagonista do filme – ferramenta de identificação clássica do cinema narrativo.
O Inquilino não ignora esses marcos, ou mesmo se coloca “contra a narrativa” (como define James Elkins em The Place of Narrative in Modern Art), mas sim joga com eles, materializando sua ausência. Em outro momento do texto, Elkins se aproxima mais do sentimento aqui evocado, dizendo que, na arte moderna, há “uma quase absoluta ausência de narrativa – uma ausência perpassada pelo que não está presente, pela permanente sensação de uma narrativa”. O Inquilino não negligencia ou nega início e fim – não nega, portanto, a experiência cinematográfica tradicional – mas joga justamente com essa indeterminação: como a bolha foi parar em um apartamento fechado? E, mais decisivo, o que acontecerá com ela? Sua vaga semelhança com o sentimento de um filme é sua mais potente ferramenta de suspense.
(E o espectador cinéfilo se lembra que O Inquilino é, ainda, o título de dois clássicos do suspense igualmente marcados por relações de suspeição: o de 1976, dirigido por Roman Polanski; e o de 1927, também chamado O Inquilino Sinistro ou O Pensionista, primeiro lançamento de longa-metragem realizado por Alfred Hitchcock, diretor que se tornou obsessão para artistas visuais que trabalham com imagem em movimento no museu, como Douglas Gordon (24 Hour Psycho, de 1993, ralentava a exibição de Psicose para que o filme durasse um dia inteiro) e Mathias Müller (The Phoenix Tapes, por exemplo, realizado com Christophe Girardet em 1999-2000, faz um inventário de seis horas de motifs retirados de quarenta filmes de Hitchcock). A apropriação do título se nutre da história pessoal do espectador de cinema, que imediatamente agrega carga extra de memória afetiva ao sentimento que Guimarães e Neuenschwander produzem, tanto quanto evocam: estamos, imediatamente, diante de um filme de suspense. E o espectador que não tiver interesse ou relação com a história do cinema ainda sim olhará para a bolha que ocupa aquele apartamento mas não ainda o habita, uma vez que a câmera registra in-cômodos sem móveis, casa sem lar, e entenderá que O Inquilino é também um título literal, e que a bolha vagueia, em tour por aquele espaço… “que ela, quem sabe um dia, poderá chamar de seu”, completa o espectador cinéfilo, que sabe que aquele filme é muitas coisas, mas não é Hitchcock. E ali, no momento em que um percebe que pode completar o pensamento do outro – unidos por aquela bolha que vaga por um espaço concreto e indeterminado – o espectador cinéfilo já trama a melhor forma de contar para seu novo alter ego sobre Polanski e Hitchcock, enquanto o pensamento do espectador não-cinéfilo permanece inacessível, pois mesmo em parênteses cada escritor precisa lidar com suas dificuldades particulares em se fingir aquilo que não é. E o desejo é o de seguir este outro espectador – este que carrega outro tipo de mistério – mas a bolha é mais forte, como toda imagem cintilante em movimento, seja em um museu ou em uma televisão pendurada na parede de um restaurante, e é preciso seguir a bolha, pois ela foi feita para ser acompanhada com os olhos).
Ao se fazer essas perguntas, percebe-se que a bolha não é mais tão somente uma bolha. Imantada pela câmera que a segue, com fidelidade canina, a bolha torna-se protagonista de fato – dona até de um carisma particular, diriam os olhos embevecidos por aquele registro glorificante do ordinário… dona de certa fotogenia.
Paradoxalmente, é justamente quando jogado para o museu que O Inquilino se efetiva como drama: o espectador se afeiçoa por aquela presença e passa, então, a tentar adivinhar ou evitar seu fim inevitável, assim como tenta avisar a heroína de um filme de horror quando ela corre sem saber para as garras do vilão. Chegará o momento em que a bolha, finalmente, se chocará com uma das paredes e explodirá? Ou apenas se dissolverá no ar, transportando para o desaparecimento a mesma mágica de seu súbito aparecimento? Tudo que sei é que, passados alguns minutos, me importo com a bolha e não quero que nada de mal lhe aconteça, mesmo sabendo que uma bolha é ainda uma bolha e que todo esse jogo de identificação tem também algo de perverso.
– Rosto
Assim como o trabalho de câmera se assegura que a bolha permaneça no meio geográfico da tela – buraco negro ou centro gravitacional de tudo que a cerca – uma certa distância é também preservada. O que fica é apenas a impressão de que, um passo à frente, e a câmera revelaria que a bolha é, também, um espelho.
Como, a princípio, alguma distância é mantida, resta especular que imagem esse espelho refletiria.
Se fizéssemos jornada pela tradição dos estudos cinematográficos, veríamos o reflexo de uma vaca fria conceitual que arrasta suas patas ao longo das últimas cinco ou seis décadas: um plano de Pai e Filha (1949), de Yasujiro Ozu, cujo significado desde então vem sendo fonte de grande querela crítica. No filme, Shukichi (Chishû Ryû) vive a preocupação de que sua filha, Noriko (Setsuko Hara), tenha “passado da hora” de casar – segundo os costumes da sociedade japonesa na época. A razão escondida é o pós-guerra: a juventude de Noriko concidira com o período em que os jovens rapazes japoneses dedicaram anos, ou mesmo vidas, aos esforços de guerra do país. O plano em questão vem no meio de uma cena próxima a 90 minutos decorridos do filme, em que pai e filha conversam em um quarto de uma pousada em Kyoto. A conversa, que tem ares de reconciliação, é subitamente interrompida por um plano de um vaso, no canto da sala. Páginas e mais páginas de produção intelectual se dedicaram ao simbolismo do vaso – em leitura zen, Paul Schrader via, no vaso, a tristeza de Noriko em ter de se separar do pai; Kiju Yoshida escreveu que se tratava de uma imagem de purificação e redenção, na mesma medida em que ela impedia que o espectador projetasse sobre a cena um clímax dramático; David Bordwell, por sua vez, optava por uma leitura estruturalista que reduzia o vaso a um convencional cutaway, algo que ele, naturalmente, não deixa de ser. Em todos os casos, falta a percepção de que o plano do vaso é como o vaso: algo que pode ser preenchido ou mantido vazio, e que carrega ambas essas possibilidades enquanto imagem (não se pode tocar o vaso ou virá-lo de cabeça para baixo, e a contemplação distanciada permite apenas que enxerguemos o vaso como esse receptáculo de muitos possíveis, e que enxerguemos o plano do vaso como um plano-vaso). Yasujiro Ozu filmou um vaso; Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander, uma bolha de sabão.
O vínculo com esse protagonismo, portanto, é necessariamente frágil, facilmente transponível e ridicularizável, a não ser que se queira, e muito, preservá-lo intacto. O pacto depende de se ver beleza no pacto, de se acreditar previamente no pacto – com a pré-disposição à ficção de alguém que entra em uma sala de cinema, exceto que aqui ela não entra em uma sala de cinema e essa memória muscular leva um tempo a ser ativada (novamente, questão de suspense). E ali, diante dessa redoma que expõe o vazio débil de seu próprio interior, o espectador que se alimenta da história do cinema encontra chance de retribuir a trajetória de solidariedade que o balão vermelho de Lamorisse tem pelo garoto que ele segue pela cidade, no clássico O Balão Vermelho (1956). O Inquilino, afinal, é também um filme para crianças.
Se assumíssemos a rota das artes visuais, a bolha carregaria outra remissão: Autorretrato em espelho convexo (1524), de Parmigianino, clássica pintura do período Maneirista, que se assemelha tanto ao formato da bolha quanto ao reflexo (aqui, parco) ontológico que essa visualidade permite. É uma pintura extraordinária, que literaliza o Maneirismo como grande distorção do “eu”: refletido em um espelho convexo, o pintor se torna um homem com uma mão (“mano”, radical a Maneirismo) gigantesca, maior do que o rosto, como se o traço de próprio punho (ou seja: o estilo) fosse, já em 1524, sinônimo de identidade. Qual é o stylo possível a uma câmera que apenas segue uma bolha de sabão?
(Estivéssemos acompanhado de um poeta, talvez adentrássemos as páginas do primoroso livro homônimo de John Ashbery – poeta que também é artista visual –, e chegaríamos à conclusão de que todo filme é, em essência, uma écfrase – a rigor, uma descrição de uma obra visual – mas como todo poeta caminha sozinho, seremos poupados dessa impertinente iluminação.)
Do contrário, diria o estruturalista, o que se vê ali é a própria objetiva da câmera. A bolha – semelhante à lente em formato, cor e transparência – é a câmera que olha de volta para o espectador, fixa no centro do quadro como a objetiva fixada à câmara escura, e que afirma, soberbamente, que o campo é o que está do lado de cá da tela. O Inquilino não é exatamente um filme sobre uma bolha, mas um filme sobre uma plateia que olha, perdida nos corredores de um museu, aquela imagem em estranho movimento. É um filme de uma câmera a filmar a representação de uma câmera. E essa bolha, sem nome e quase sempre sem rosto, flutua pelos cômodos desta casa como o pensamento daquelas outras pessoas, a quem a bolha filma, mantendo-as fixas no centro do quadro. As janelas são fechadas, intransponível parênteses, e ainda sim, dentro desta câmara, as luzes e as iluminações rebatem, serpenteiam e dançam.
(Mas esta ideia demasiado pós-moderna de que um filme é sobre seu espectador não explica o fascínio da bolha, que viaja em raccord tão suave que faz cada corte parecer um passe de mágica, até que um deles sacramente a não-destruição da bolha, mantendo o espectador nessa eterna suspensão dramática – na euforia da antecipação que é solapada pela surpresa – como se Psicose pudesse não só durar um dia inteiro, como também durar um dia inteiro em apenas dez minutos. Como o plano-vaso de Ozu, O Inquilino é um filme-bolha).
– Átomo
O que acontece, porém, não é exatamente a negação da narrativa, como escreveu James Elkins, estendendo sua reflexão para toda a arte moderna. Talvez este tenha sido o paradigma da primeira vídeo-arte, tomada pelo desejo de libertar o cinema – arte livre que, justamente por isso, termina produzindo em vários artistas a impressão da necessidade de libertá-la – da imposição narrativa que, a rigor, não estava em sua origem (e a bolha parece especialmente em casa quando adentra os corredores do primeiro cinema).
Do contrário, o filme de Cao Guimarães e Rivane Neuenschwander – como Five, Dedicated to Ozu (2003), de Abbas Kiarostami; como Elefante (1989), de Alan Clarke; como 3195 Man.Canoe.Ocean (2005), de Marcellvs, exibido em outro cômodo desta mesma construção – parece se dedicar a uma espécie de atomismo cinematográfico, decompondo não exatamente o mundo, mas o próprio cinema a seus elementos constitutivos mais básicos e fundamentais. Não se trata, portanto, de uma negação da narrativa, mas de uma extrema depuração, de se tentar precisar o mínimo necessário para que essa experiência cinematográfica aconteça – abrindo mão, inclusive, do próprio cinema como espaço de exibição.
Em época em que o barroco foi naturalizado como convenção que espirala sem almejar um céu, há, neste cinema de bolha de sabão, uma retomada microscópica dos mais fundamentais prazeres que se escondem sob o peso da indumentária narrativa: uma presença fotogênica a acompanhar; o tempo para se afeiçoar por ela, a ponto de a tal fotogenia se impor como milagre; a iminência do desaparecimento; e a incerteza de quando o fim, por fim, chegará – que, aqui, não chega, não agora, mantendo-se como promessa para um futuro que apenas risca o horizonte, como tragédia, como drama.