Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2016.
Explosão imaginária
por Fábio Andrade
“Embrace the epic fail of my exploding whale”.
Sufjan Stevens
As 1001 Noites começa com uma imagem extremamente familiar ao ideário português: a vista da margem do continente, balançada pelos humores do mar. “Desde muito cedo coloquei-me a pensar que eu tenho muita coisa a aprender na vida. Quer dizer, o mundo não tem limites”, diz, em voz over, um primeiro depoente desconhecido, encarnando com naturalidade as promessas imperialistas de um ex-império há muito governado por imperativos de outrem. A imagem, porém, trata de complicar a fala: este barco não se afasta da margem. Em vez do ímpeto exploratório que expande rumo ao desconhecido, a nau de Miguel Gomes se mantém em cabotagem, sempre próxima à terra, a ponto de o mar sumir de vista e sua presença ser sentida apenas por esse balanço que sacode a vista dos marinheiros ociosos no estaleiro. Nos relatos, Santa Maria, Pinta e Niña são substituídas por Apache, Discovery e Kaprela – outros navios em outras línguas e que rumaram a outros portos, mas que guardam todos uma importante semelhança: são protagonistas de feitos que ocorrem apenas no passado.
O presente, no caso, é bem outro: Miguel Gomes à beira não do mar, mas da piscina de um hotel, cercado por sua equipe de filmagem, com o rosto enterrado nas palmas, como a se perguntar “em que diabos me meti?”. Sherazade, a narradora heroína de As 1001 Noites (a obra literária, não o filme) ficou marcada no imaginário popular como aquela que precisa narrar para adiar a morte – estigma justo, mas que omite parte importante do gesto que o filme recupera. Pois Sherazade não era simplesmente mais uma das virgens escolhidas pelo rei Shariar – o ressentido que matava uma esposa por noite, para ter certeza de que jamais seria traído novamente. Diferente, ela se oferecia em matrimônio pois acreditava ter o antídoto para aquele ciclo assassino: sua destreza narrativa seria capaz de prolongar sua vida pelo tempo que sua narração sustentasse interesse, abrindo, dia após dia, novas histórias que nunca terminam, evitando a própria morte e o recrutamento de novas virgens que aguardariam aquele mesmo desfecho. O voluntarismo do gesto se espelha no rosto de Miguel Gomes, às voltas com as contradições de sua própria ambição de realizar uma superprodução milionária sobre como o recente pacote de austeridade fiscal nacional patrocinou o empobrecimento sistemático dos cidadãos portugueses. Em voz over, o diretor fala da possibilidade de uma relação metafórica entre a paralisação do estaleiro e a disseminação da praga de vespas asiáticas que destrói a produção de mel local – os dois episódios que o trouxeram a Viana, e à auto-contemplação daquela mesa à piscina – “mas não consigo dizer qual é, porque sou burro e a abstração me dá vertigens”. É ali, entre a crença de que narrar pode desbravar novas possibilidades em um mundo que não tem limites e a vertigem paralisante inerente ao glutonismo do gesto, que Miguel Gomes toma a única decisão compreensível (se não a mais digna) e foge em disparada.
Neste brilhante prólogo, As 1001 Noites encontra um equilíbrio, uma espécie de língua própria, que nas seis horas restantes poucas vezes tornará a se manifestar com tal inteireza (ao final, depois de se tornar tantas outras coisas, talvez o espectador já nem mais lembre o quão acachapante era todo aquele princípio): os trabalhadores que perderam seu emprego às docas se misturam ao relato do inventor do lança-chamas exterminador de vespas sobre os fazendeiros que perdiam seu sustento à peste, enquanto a equipe do filme mata tempo, fazendo ola ao redor da mesa do almoço, aguardando pelo diretor que desaparecera. Tudo isso é amarrado pela lógica de livre associações de um filme sem direção, de um barco sem comando que, ainda assim, se movimenta, empurrado pelo movimento do vento e das ondas: quando a burrice impede que se perceba as ligações metafóricas, torce-se para que o instinto seja forte o suficiente para simplesmente contrapor o que se encontrou, na fé de que as conexões se estabeleçam por conta própria. A aparente aleatoriedade eventualmente encontra razões em uma montagem que trabalha na proximidade por propriedades físicas (cortar de uma árvore alta enfeitada para o Natal para os esguios guindastes no porto) e por sentido, na distância (alguns minutos depois, o queimador de vespas dirá ter se acostumado a subir em árvores por ter sido o responsável por arrumar a árvore de Natal da cidade – a mais alta de todo o país – ressignificando aquela presença bruta como importante dado narrativo). É como se Portugal montasse o próprio filme, tal como os contos de Sherazade são frutos de autoria cumulativa e partilhada: bastam olhos e ouvidos atentos para perceber o que acontece na realidade e um tanto de imaginação para que o resto se encarregue de si mesmo, em rimas e conexões brutas que, cedo ou tarde, se revelarão também articulações de sentido, pois tudo aquilo vem de um lugar comum… tudo aquilo é Portugal (ou ao menos o Portugal de Miguel Gomes), e, dado o tempo necessário, um país que se monta como país há de ser capaz de se montar também em forma de filme.
Essa abertura do cinema ao mundo é algo que se mostrava especialmente vital em Aquele Querido Mês de Agosto (2008), um filme que em última instância era sobre a necessidade de deixar as peças encontrarem seus próprios lugares. As 1001 Noites aplica ethos parecido a desejos muito mais amplos, e as contradições que alimentam esses desejos são implacáveis: “Os escassos recursos do cinema português não são compatíveis com os vossos devaneios”, diz um integrante da equipe, enquanto o diretor e seus comparsas, enterrados na areia com a cabeça a prêmio, suplicam por clemência – clemência que eles mesmos sabem que, por justiça, não deveria chegar. Afinal, o que importa, neste caso, não é questão de justiça, mas de uma outra forma de juízo: “Mas se por acaso vos contasse uma estória que causasse espanto, poderiam vir a refugar a vossa sentença?”, pergunta Miguel Gomes, em reverência sindical ao elemento universal do juízo estético. E daí começa a aventura de Sherazade, não em uma caravela, mas em uma lancha, no gingado de uma versão ska de “Perfídia” e créditos sobre a imagem em estonteante amarelo. Daí, começa a narração, a que o rei responde “não te matarei enquanto não tiver ouvido a continuação deste conto”. Daí, la nave va.
Navegar, porém, é preciso; narrar, por outro lado, não é preciso. E é de imprecisão que As 1001 Noites é feito. O dispositivo, a esta altura, já foi mais que explanado em artigos e entrevistas: por um ano, Gomes e equipe tiveram à disposição um grupo de jornalistas que buscavam histórias nas mais diversas profundidades do país; esses relatos eram posteriormente selecionados, reinventados, roteirizados e filmados, formando uma espécie de mosaico decaído de uma nação em depressão. Do livro, Gomes herda sobretudo o impulso, mas também uma estrutura: uma sequência de histórias que não se encerram, em uma operação exponencial não só de espaços, rostos e eventos, mas também de registros – prosa, poesia e música. Alinhavando essa multiplicidade, está o narrador, enterrado até a cabeça na vertigem das contradições de seu próprio gesto, expostas não como fim, mas como o único princípio possível para qualquer militância. Nestes muitos cacos, talvez exista ainda a possibilidade de um país.
Em fala recente na universidade de Columbia, o filósofo Alain Badiou delimitou três caminhos possíveis à arte política pós-queda do muro de Berlim: 1) assumir-se como arte oficial; 2) contentar-se em ser arte crítica, sabendo que essa dimensão tem efetividade limitada e é rapidamente absorvida pelas instituições criticadas, transformada em capital; e 3) vislumbrar e afirmar a possibilidade de outros possíveis já latentes no mundo presente. A contradição fundamental de As 1001 Noites está em, em certa medida, ser um pouco dos três (em grau crescente, de 1 a 3); o que o torna um filme político de maior relevo, porém, é justamente a maneira como ele detecta esses outros possíveis dentro da realidade portuguesa contemporânea e os fantasia como possibilidade, como propostas de outros futuros já latentes no presente. Se, em Cavalo Dinheiro (2014), Pedro Costa faz, no presente, a arqueologia de uma opressão histórica, As 1001 Noites democratiza o trauma, projetando-o para o porvir. A chance de escapar é proporcional à capacidade de invenção (lembremos que uma das primeiras vozes do filme é justamente a do inventor do lança-chamas, que lista todos os outros artefatos que criara com as próprias mãos, a ponto de ganhar o apelido de MacGyver – série que ele, inclusive, gostava de assistir) e justamente por isso é necessário fazer um filme de guarda partilhada: o possível é obra das pessoas, não de Miguel Gomes; seu gesto está em afirmar de maneira convincente a possibilidade desse possível.
Em seu melhor, As 1001 Noites impressiona pela sensação de que “tudo pode”: de uma ponta a outra, a trilogia vai de melancólicas denúncias em estilo cinejornal à criação artificial de novos cantos para velhos pássaros naturais, passando por cães fantasmas, um videoclipe dos Novos Baianos que parece tirado direto do YouTube, um personagem tão maravilhosamente inexplicável quanto o paddleman e a troça coletiva dos dotes dos credores da dívida portuguesa, em momento de pura chanchada. Desta liberdade, surgem grandes oportunidades de cinema: a descrição da dívida portuguesa junto a um traveling sobre camelos ruminantes; a tradução criativa do intérprete na reunião entre o governo português e os credores; o inventário de animais no telefone sem fio que passa dos gatos de jardim à cabeça de boi em um açougue a história do julgamento do galo; a senhora que se transforma em fogos de artifício em um jogo de dardos ao som de “Spiegel im Spiegel”; o casal de jovens envergonhados comendo uvas como se engole segredos, sob o guarda-chuva escorado em um pequeno trator – isso tudo para ficarmos só em trechos do primeiro e melhor dos três episódios (o Inquieto). O frescor que Miguel Gomes trouxera ao cinema com A Cara que Mereces (2004) e o quase irretocável Aquele Querido Mês de Agosto se manifesta em esplendor nesses momentos belos porque deliberados, que, em sua aparente gratuidade, conservam ainda o sumo de um significado que transcende a linguagem.
O risco de se navegar em um barco sem capitão está em achar que a força das ondas não pode ser, também, simples fruto do hábito.
Em seu pior, As 1001 Noites confunde o “tudo pode” com o “tudo deve”: demasiado confortável com o apriorismo de sua longa duração, o filme – em especial os episódios 2 e 3 – exacerba a flacidez já sensível em Tabu (2012), por vezes permitindo que essa abertura a uma auto-montagem se transforme em verdadeira não-edição. Contos como “As lágrimas da juíza” (presente no volume 2 – o Desolado) ou “O inebriante canto dos tentilhões” (no volume 3 – o Encantado) vêem grandes idéias (algumas das melhores) serem soterradas por uma auto-leniência pouco criteriosa, muitas vezes tomando a longa duração dos planos (e do filme) como um valor em si, deixando que o porte do texto (do sentido figurado) se sobreponha às potências plásticas (ritmo, melodia – palavras surpreendentemente estrangeiras a um filme que se pretende tão musical) das imagens e sons, transformando sua admirável liberdade em funcionalismo auto-indulgente. Se, por um lado, é inspirador ver a irreverência com que Miguel Gomes passa de João César Monteiro a Apichatpong Weerasethakul (a colaboração com o fotógrafo Sayombhu Mukdeeprom, fotógrafo de diversos filmes de Apichatpong, traz a As 1001 Noites sua maneira sobrenaturalmente expressiva de mover a câmera, por exemplo) e então a Wang Bing de um plano a outro – e também António Reis, Blake Edwards e Howard Hawks -, por outro lado essa cartela referencial nunca se fez tão visível e superficial no cinema do diretor quanto aqui – nem mesmo em Tabu, a rigor um filme abertamente inspirado por Murnau. A impressão é de que momentos de auto-satisfação cinéfila que antes talvez terminassem podados no chão proverbial da sala de montagem tenham encontrando vaga na duração elástica deste épico por força de vontade (mais que de natureza), tornando a tessitura dramática não mais densa ou tensa (para se manter vivo, é preciso manter o rei não só acordado, mas ansiando pelo desfecho que nunca vem), mas sim um tanto auto-congratulatória, contente com a nobreza de seu próprio gesto.
O problema está no olhar romantizado para a pureza das ondas como frutos independentes da maré, sem se dar conta que um transatlântico (com o nome grafado em caixa alta orgulhosa no próprio casco) atravessa ao fundo, mexendo e remexendo a água por onde passa.
Aos poucos, aquela energia tão cuidadosamente prospectada no prólogo vai se esvaindo em um longo suspiro – fôlego que, salvo espasmos de gênio, o filme só consegue recobrar, mesmo que de maneira trôpega, na primeira metade do terceiro volume. O fracasso, porém, é algo que sempre esteve no horizonte da empreitada. “Pensei que poderia fazer um bonito filme, cheio de estórias maravilhosas e sedutoras. Ao mesmo tempo, pensei que o filme poderia acompanhar durante um ano a miserável situação atual de Portugal. Qualquer cavalgadura percebe que, com mais ou menos jeito, se pode fazer um desses dois filmes, mas que é impossível fazer os dois ao mesmo tempo”, confessa Miguel Gomes, logo após sua fuga. A beleza do filme está justamente na abertura quixotesca a esse desejo impossível de promover o encontro dessas duas dimensões em uma narrativa épica. O fracasso é justo e invariavelmente belo; falta-lhe justamente ser épico.
Em um dos planos mais marcantes do filme, próximo ao fim do primeiro volume, uma monumental baleia chega morta às areias de uma praia em Portugal. O oceano não mais oferece promessa de expansão para Índias mal calculadas, mas desova os cadáveres à praia, em um dia cinzento e chuvoso, atrapalhando o banho de réveillon. À primeira menção de uma aproximação, a baleia explode, em toda sua monumental falta de proporção. Porém, enquanto seus pedaços voam pelos ares, é inevitável a sensação de que a explosão é mais um desejo manifesto do que um direito conquistado pelo filme. Por entre os frames, permanece uma imagem que o filme não mostra, mas que se faz ver na duração deste longo suspiro: a baleia ainda inteira, se decompondo lentamente, com a batida morosa das ondas de um mar turvo e calmo.