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Quentin Tarantino

Publicado originalmente em Quentin Tarantino, idealizado por Alessandra Castañeda e Natalia Mendonça, organizado por João Cândido Zacharias (Rio de Janeiro: Jurubeba Produções, 2013) 12-7.

Castelo de cartas

Em texto que fazia parte da pauta comemorativa da edição 50 da revista Contracampo, publicada meses antes da estreia de Kill Bill: Vol. 1, o crítico Cleber Eduardo abria a conversa com as bases de um paradigma: “Quentin Tarantino talvez seja o cineasta americano mais influente dos anos 1990”. Determinar e traçar rotas de uma influência já consumada é tarefa das mais complicadas, especialmente por ser virtualmente impossível determinar o que é causa e o que é consequência, onde termina o sintoma e começa a prefiguração. Ainda assim, assumo o desafio: sete anos depois, por mais que Tarantino tenha criado um visível círculo de relações que inclui diretores como Robert Rodriguez e Eli Roth, e tenha sido assumido como inspiração para diluidores de talento limitado, como Guy Ritchie, parece difícil fazer tal afirmação com a mesma convicção, mesmo com o cuidado do “talvez”. Ao menos se pensarmos na influência estrita de Tarantino no próprio cinema, fica a percepção de que seus frutos não foram tantos e, em geral, injustos.

Em meio a um sistema de produção cada vez mais massificado de super-heróis, CGI e franquias, e uma produção autoral que sobrevive forte, mas entre portas fechadas (de cômodos aconchegantes, para não dizer pequenos), os filmes de Tarantino hoje parecem chegar como eventos solitários. Essa solidão vem por uma peculiaridade de recepção que pode ajudar na compreensão das obras: são filmes que se impõem como iscas prováveis de atenção tanto das plateias anestesiadas pela homogeneidade dos multiplex quanto do público do nicho, não menos anestesiado, que se convencionou chamar de “cinema de arte” (e, claro, há preguiçosos em ambos os campos). Talvez Tarantino hoje não motive mais a impressão de ser “o cineasta americano mais influente dos anos 1990”, mas ele parece cada vez mais cristalizado como o artista americano que melhor resumiu as inquietações deste momento histórico ainda vigente, mesmo que transformado. Tarantino é o mais influente ou o mais influenciado cineasta americano das últimas décadas?

A rigor, os filmes parecem afirmar que essa questão não tem qualquer importância. Parece impossível determinar onde termina o sintoma e começa a prefiguração: em Tarantino, ambos os processos são concomitantes. Há uma ideia de participação 13 em jogo, de subsumir os limites entre artista e receptor da obra, que ganha contornos mais bem definidos em todos os acidentes de projeção programados em À Prova de Morte (2007) e em seu controle absoluto do aparente descontrole (quem não ouviu uma plateia uivar de excitação e frustração com a lap dance interrompida de Vanessa Ferlito provavelmente viu o filme em casa… e sozinho). Há, portanto, a ideia do cinema como um jogo interativo muito calcado nos exercícios de controle de Hitchcock–referência improvável para o cinema de Tarantino, mas de onde ele parece tirar suas mais valiosas lições. Em uma das sessões em que assisti a Bastardos inglórios (2009), um jovem espectador sentado na fileira de trás não conseguiu conter
sua dúvida após o fuzilamento de Hitler: “mas isso realmente aconteceu?” A ingenuidade é rara, mas o episódio dá certa medida de como o cinema de Tarantino rompe, desde o princípio, com uma tradição realista, para criar outro universo, no qual este tipo de justiçamento é não só possível, mas absolutamente crível. Afinal, vemos o rosto de Hitler esfacelar-se em celuloide e, a cada perfuração, uma pergunta surge em letras garrafais, antes de dissolver no ar feito o “WHIMPER” que chora a versão animada de O-Ren Ishii (Lucy Liu) em Kill Bill: e não aconteceu?

Há uma impressão latente de que os filmes de Quentin Tarantino existem em um mundo à parte, desconectado do mundo real… mas esse mundo inclui o espectador do cinema. O limite desse engajamento está na expiação fácil pela redenção (Django Livre, de 2012, chega perigosamente perto dela em seu final), e sua potência está na cooptação do espectador, por tomar parte em um jogo que faz pouco ou nenhum sentido em sua relação com a vida fora do cinema (ou, no máximo, serve como forma de romantizar as aparentes conversas sobre nada que todos protagonizamos tantas vezes ao dia). O cinema de Tarantino é uma espécie de ilha (mas não uma ilha deserta), e uma ilha só consegue ter influência sobre as ondas que quebram em sua costa. Mas para chegarmos aos motivos que o tornam insular, talvez seja necessário limpar um pouco o terreno, tirando do caminho alguns penduricalhos que lhe foram atribuídos em momentos distintos de sua carreira – muitos deles, com justiça. Assim, pode-se chegar ao que realmente permanece, hoje, como específico.

As primeiras impressões à época do lançamento de Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994) pareciam grifar os mesmos elementos, as mesmas qualidades e os mesmos possíveis excessos (mais frequentemente apontados como excessos possíveis do que como problemas concretos – uma vez que a leitura retrospectiva deixa clara a dificuldade da crítica de lidar com tudo aquilo de maneira mais direta, enquanto a História ainda estava por ser escrita), bem resumidos neste trecho da crítica que Jonathan Rosenbaum escreveu sobre Cães de Aluguel, em 1993: “Nossa percepção daquilo que está acontecendo no filme segue sempre em transformação, e Tarantino tem um talento caleidoscópico com os atores, diálogos, enquadramentos em scope e a construção não convencional de dramaturgia. Mais questionáveis são as celebrações orgulhosas de brutalidade: baldes de sangue, discursos racistas e homofóbicos, e uma dolorosa sequência de tortura sádica e mutilação (fora de quadro) que tem a clara intenção de nos chocar com seu desconforto”. É notável, portanto, um talento raro para a escrita de diálogo e para o trabalho com atores; um gosto, à época, atípico (ou fora de moda), pela estrutura não linear; e um desejo de filmar cenas de grande violência com uma frontalidade quase paródica. São características claras do cinema de Tarantino, que permanecem, em maior ou menor medida, em seus filmes seguintes e que seguem sendo usadas como termômetro para sua influência. Seu ouvido é privilegiadíssimo para a fala; seu olho não parece guardar pudor diante de qualquer frontalidade (e não deixa de ser curioso ver como os movimentos que escondem partes da cena de tortura de Cães de Aluguel hoje parecem pudicos se comparados a tudo o que o diretor fez depois), e mesmo os mais lineares Jackie Brown, de 1997, e À Prova de Morte, de 2007, guardam pequenas dobras de tempo e de ponto de vista que mantêm o entendimento em constante fluxo.

Mas todo esse talento – e a impressão desse talento em outros artistas – não é, necessariamente, o que faz dele um cineasta insular. Afinal, mesmo com essa regularidade de valores, são notáveis algumas mudanças de rumo, ou ao menos a intensificação de uma vocação ao pastiche, que, embora já presente entre Cães de Aluguel e Jackie Brown, ganha outro tratamento a partir de Kill Bill. Se à época do lançamento de Pulp Fiction já se falava da inquietude com que o diretor revisitava certas histórias do cinema, é a partir de Kill Bill que a colagem toma de maneira mais ostensiva a superfície do filme – e se torna, em alguma medida, tema do filme. A cultura da criação de segunda mão, que se faz sentir em obras tão distintas quanto um disco do Girl Talk e um episódio de Family Guy, encontra em Tarantino, uma espécie de maneirismo sem origem – ou melhor, de um maneirismo de todas as origens. Se o maneirismo é a criação pela remissão a uma obra-matriz incontornável (Dublê de Corpo e todas suas citações a Hitchcock, como se fosse impossível fazer cinema sem passar por Hitchcock… como se
Hitchcock fosse o cinema), para então deformá-la, a partir de Kill Bill o cinema de Tarantino parece deformar toda e qualquer matriz, mesmo que não plenamente reconhecível. O movimento maneirista se impõe à fonte de tormenta e se oferece como possibilidade de superação deste trauma, desta obra, deste paradigma anterior. Não é mais o espectro deste ou daquele filme, mas de todo o cinema.

Essa concentração de foco que vem com Kill Bill não é, tampouco, o específico. Ao contrário, ela impulsionou mais a ruptura do que a aglutinação – o crítico Christoph Huber, da revista Cinema Scope, por exemplo, escreveu que a “maior ironia está em criar um Elefante Branco artístico mastigando inocentemente filmes exploitation”. Mas a constatação da mudança é um passo adiante nessa busca. Em primeiro lugar, essa espécie de pós-maneirismo leva a um abraço natural do cinema de gênero por uma veia barroca. Assim como o faroeste italiano retomava a matriz americana (e japonesa, no justo acerto de contas da história do cinema em Kill Bill), desprovida de qualquer ideologia – mas com caubóis que atiravam mais rápido, e da maneira mais espetacular já vista –, nos filmes de Tarantino o fim é a pregnância da própria imagem… a capacidade desse olhar deformador de transformar qualquer apropriação em algo cool. A palavra, repetida exaustivamente nos primeiros filmes de Tarantino, parece ser a égide que rege o abraço do cinema de gênero, da cinefilia e desse inventário pós-deleuzeano, que lista, sequestra, reconfigura e reescreve pelas linhas (tortas) de outrem (daí as frequentes acusações de que Tarantino fazia um cinema “vazio”). É, portanto, território do gênero, o que, em cinema, quer dizer território do estilo.

Todavia, muito do melhor cinema americano feito nos últimos anos é fundado nesse mesmo interesse pelo cinema de gênero como resguardo da criação artística. É o elo que conecta artistas tão diferentes quanto James Gray, Brian De Palma, Abel Ferrara ou Monte Hellman – diretor veterano que chegou a ser cotado para dirigir Cães de Aluguel, mas terminou assumindo apenas a função de produtor executivo do filme. Mas se, por um lado, esses autores parecem aprofundar cada vez mais um cinema pessoal, que ressoa com muita força em um grupo cada vez mais restrito – e Scorsese parece ter vendido as botas em nome de um crescente academicismo (ainda que com momentos de força e beleza) –, o grande diferencial de Tarantino é justamente o de fazer a ponte entre o cinema de autor e o cinema popular (e, nesse sentido, talvez só encontre par comparável em M. Night Shyamalan, ao menos no período que vai de O Sexto Sentido até A Vila), de ser, em realidade, um autor com os pés voluntariamente cobertos pela poeira de cinemas abandonados, capaz de pôr em prática o que a geração Cahiers du Cinema colocava como proposta intelectual: absorver ao mesmo tempo Jean Rouch e Eisenstein (como dizia Godard), Robert Bresson e Nicholas Ray, a estrutura esburacada do nouveau roman e a potência epidérmica dos filmes da Monogram. O autorismo de Andrew Sarris e as falsas cartelas de estúdios que não existem; o filme de gângster, os heist movies, o wuxia, o faroeste, o blaxploitation, o filme de guerra mais vagabundo… Tarantino faz, no coração de Hollywood, um cinema extremamente reverente a tudo o que Hollywood se esforçou para varrer, feito ácaro, para debaixo de um tapete persa.

Essa duplicidade, porém, não é somente um dado de recepção, um dado de indústria. Ela é, na verdade, a base formal do próprio cinema de Tarantino. Materialmente, nos filmes, ela se manifesta na convivência de características antagônicas que também vêm sendo destacadas – mas raramente colocadas em relação – desde o pé na porta inicial de Cães de Aluguel. Em primeiro lugar, há os giros no vazio, as conversas de vida e morte sobre coisa nenhuma, os absurdos espetaculares que guiam a construção meticulosa de cada cena. Há, portanto, um desejo herdeiro da pop art de afirmar que o sentido só se encontra na forma, e a forma se encontra no sentido. Junto a isso, construindo isso, há a impressão tátil de estarmos diante não só de uma obra, mas de um universo. Desde o princípio, a obra de Tarantino é habitada por seres, rostos, nomes e marcas que circulam livremente entre filmes diferentes: Vic Vega (Michael Madsen), de Cães de Aluguel, e seu irmão Vincent Vega (John Travolta) em Pulp Fiction; a frequência do trabalho com atores como Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Tim Roth, Harvey Keitel, Zoë Bell e vários outros que passam de um filme a outro, por vezes em papéis que parecem comentar suas aparições anteriores; todos os Big Kahuna Burgers, os Red Apple Cigarettes, os Teriyaki Donuts – marcas e restaurantes fictícios que ganham atenção detida em filmes diferentes, e ajudam a criar a impressão de que todos aqueles personagens circulam pelos mesmos ambientes, e podem vir a se encontrar em uma esquina qualquer de Los Angeles, Okinawa ou Berlim. Ou dentro do porta-malas de um carro.

A atenção conquistada pelo cinema de Tarantino está na urdidura cuidadosa desses tempos, na distensão paciente e resignada de um fiapo de história que pouco importa, mas que ganha corpo nessa espera. Há, portanto, outra lição tomada de Hitchcock, que diz respeito também à manipulação precisa dos elementos cinematográficos para se criar e sustentar essa espera, esse tempo que escorre e convive, por vezes gerando um uso bastante impressionante do split screen (o roubo da arma em Jackie Brown; a sequência do hospital em Kill Bill: Vol.1, em
que a personagem de Uma Thurman espera pela injeção que vem tirar sua vida). A diferença é que Tarantino preenche essa espera de aparente vazio. Enquanto Hitchcock ainda construía a impressão de que algo podia acontecer, em Tarantino temos conversas e situações espiraladas que se desenrolam no horizonte, até serem interrompidas por um estampido, um tiro seco e decisivo, que rapidamente “resolve o problema” (a morte
de Vincent Vega em Pulp Fiction e o tiro que ele dá na cabeça de um refém, dentro do carro; o final de Cães de Aluguel; o dedo cortado em seu episódio de Grande Hotel; as duas resoluções de À Prova de Morte), sem maior motivo ou força providencial. O cinema de Tarantino parece se concentrar na construção cuidadosa de todo um universo que pode ser destruído rápida e deliberadamente, em um golpe sem misericórdia. Mas há, neste jogo perverso, um dado essencial: esse último sopro que derruba a pirâmide de cartas só tem efeito se sentirmos que
ajudamos a construir essa pirâmide, que colocamos carta por carta juntamente com os filmes. Não há graça ou desgraça no riso que estraga a brincadeira de quem brinca sozinho.

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