Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2013.
Se um viajante em uma noite…
Um ensaio sobre Holy Motors, de Leos Carax, precisa se defrontar logo em seus primeiros toques com os limites da originalidade do filme e do próprio pensamento. Saído da primeira projeção, o crítico busca um pingo de identificação no que já foi escrito por aí, entre os hiperlativos quanto à originalidade e insularidade do filme na história do cinema, ironicamente calcado em sua absoluta reverência e consciência desta mesma história. Para prosseguir a leitura e sorver o que resta do leite derramado, talvez seja necessário silenciar no íntimo os ecos de Cantando na Chuva (1952), de Sherlock Jr (1924), fora o espírito de Murnau que todo filme de Carax de alguma maneira evoca… mas sim, de fato, Holy Motors é grande, e a afirmação de grandeza – que aqui faz um baile de máscaras com a tal originalidade – talvez realmente demande simplificações e hiperlativos. Entre as frases de efeito que piscam em neon verde pelos cantos da mente, há uma que brilha um tanto mais forte: o cinema é uma arte jovem, demasiado jovem. Holy Motors brota na fertilidade dessa juventude e, se o filme nos parece novo, é porque ele é tão novo quanto o próprio cinema.
Dada a desorientação elogiosa ou raivosa – desorientação só em parte construída pelo filme e só em parte frutífera -, talvez seja necessário tatear por paredes mais antigas que também cercam o pensamento, na esperança de encontrar uma fechadura escondida que abra uma porta para algum outro lugar. Qualquer outro, desde que não este. A passagem secreta, aqui, não se esconde nas árvores que estampam o papel de parede de um quarto de hotel, mas sim em um falso livro, colocado no meio de uma estante verdadeira cheia de livros verdadeiros, em uma das paredes do claustro. Puxando o livro para ver a capa, uma passagem se abre. A capa não se revela totalmente, mas é possível ler um nome na lombada: “Se um Viajante em uma Noite de Inverno”, de Ítalo Calvino. Uma outra busca pelo que já foi escrito sobre Carax e o romance de Calvino mostra que alguns (poucos) outros que passaram por esta mesma cela chegaram a esbarrar no livro antes… mas a breve menção em cadernos de notas de aventureiros desconhecidos não fala sobre arrancar de fato o falso livro, sentar em uma poltrona com ele no colo e folheá-lo em busca não de pistas, não de chaves, não de explicações…
… talvez em busca de companhia, por mais que se reconheça que a jornada de Denis Lavant em sua limusine se alimenta em absoluto de sua solidão, como bem sabe a personagem de Edtih Scob, a todo tempo lhe devolvendo privacidade. O cinema, como a leitura, é uma experiência de solidão. Ciente da gordura deixada pelos dedos de outros prisioneiros na capa daquele mesmo livro, e da originalidade revelada inconsistente do insight que gerava o torpor que toma o corpo toda vez que alguém acredita ter encontrado uma saída, vem à cabeça uma frase que um amigo contou e atribuiu a Jean Douchet, em comentário sobre a inexorável condição de, como Carax, ser francês. Cito a frase de cabeça, para poder entortá-la sem culpa às necessidades do momento: “resta apenas confirmar inteligência”. Com o desejo de confirmação e alguma curiosidade, abre-se o livro:
“Um livro recém-publicado lhe dá um prazer especial, não é apenas o livro que você está carregando, é também a novidade contida nele, que poderia ser apenas a do objeto saído há pouco da fábrica, é a beleza diabólica com a qual os livros se adornam, que dura até que a capa amarelece, até que um véu de poeira se deposita nas bordas das folhas e o canto da lombada se rasga, no breve outono das bibliotecas. Você espera encontrar sempre a novidade verdadeira, que tendo sido novidade uma vez continue sendo novidade para sempre. Ao ler um livro recém-saído, você se apropria dessa novidade do primeiro instante, sem precisar depois persegui-la, encurralá-la. Será desta vez que isso acontecerá? Nunca se sabe. Vejamos como o livro começa”.
Fragmentos de uma prancha cronofotográfica de Étienne-Jules Marey (ou Denis Lavant em uma esteira rolante); um quarto dentro de uma falsa floresta; uma passagem secreta para um cinema lotado de pessoas que dormem. Um mastiff que caminha pelo corredor que leva às poltronas, em uma imagem que poderia sair de um filme de Buñuel. É difícil imaginar Carax fazendo um filme de Buñuel mas, como em “Se Um Viajante…”, esta dificuldade e distância, veremos adiante, é parte da intenção (e da diversão). Por enquanto, o que paira sobre a sala é esta sensação de endereçamento, de que, assim como Calvino fala diretamente ao leitor, Carax nos confronta com essa primeira pessoa, essa capacidade misteriosa de recontar nossos próprios passos na travessia pelo filme, mesmo antes de eles se completarem. Estamos ao seu lado, dentro daquele cinema, e se vemos estas imagens é porque somos dos poucos que permaneceram acordados.
“Agora, sim, você está pronto para devorar as primeiras linhas da primeira página. Está preparado para reconhecer o inconfundível estilo do autor. Não, você não o está reconhecendo. Mas, pensando bem, quem afirmou que este autor tem estilo inconfundível? Pelo contrário: sabe-se que é um autor que muda muito de um livro para outro. E é justamente nessas mudanças que se pode reconhecê-lo. (…) De início você talvez experimente certo desnorteamento, como o que sobrevém quando somos apresentados a uma pessoa que pelo nome parecia identificar-se com determinada fisionomia, mas que, ao tentarmos fazer coincidir os traços do rosto que vemos com os daquele de que nos lembramos, percebemos não combinar. Mas depois você prossegue na leitura e percebe que de algum modo o livro se deixa ler, independentemente daquilo que você esperava do autor. O livro é o que desperta sua curiosidade; pensando bem, você até prefere que seja assim, deparar com algo que ainda não sabe bem o que é”.
O desconhecido que se segue é uma viagem de limusine ao lado de M. Oscar (Denis Lavant, aqui também alter-ego de Leos Carax – anagrama de batismo Alex Oscar) e os princípios (ou os meios, ou os fins) de diversos filmes abortados, como os romances que Calvino começa a cada capítulo par (o encontro de Oscar com a cena que lhe foi preparada), e que são interrompidos para sempre com a chegada do capítulo ímpar seguinte, com novo endereçamento ao leitor (os “parágrafos de limusine”, ousaria dizer). Holy Motors é, portanto, um filme de filmes apócrifos – o que, em contexto dominado pela lógica da camera-stylo (a câmera-caneta de Astruc), significa o roubo do estilo, a pilhagem de uma grafia (na verdade, de várias) que não pode ser sua, e que é tomada de empréstimo como se veste os sapatos do morto na esperança de, com isso, conhecer algo de sua vida. A limusine sustenta um acúmulo de pastiches, uma sequência de ações a partir de um dossiê pré-determinado, um roteiro anterior à presença. É, portanto, um trabalho em cima da convenção, do gênero – como muito foi apontado -, do estilo. Um trabalho de mise en scène.
Há um perigo nesta afirmação. Seria Leos Carax um último herdeiro do derrogatório formalismo, da imitação que tem como próprio fim o prazer da falsificação? É fácil apontar o que Holy Motors não é. Quando é preciso dizer o que ele de fato é – mesmo que este ser seja múltiplo, e estejamos definindo apenas uma pequena parcela de sua existência – é que as simplificações e os hiperlativos se oferecem com uma facilidade tão confortável quanto as poltronas de cinema que convidam ao sono. Em uma réplica ao crítico Angelo Guglielmi, anexada em algumas das edições de “Se um Viajante em uma Noite de Inverno”, Calvino dizia ter buscado inspiração para seus romances interrompidos nos gêneros que lhe eram mais distantes, menos naturais. “(…) sobretudo, tentei evidenciar o fato de que todo livro nasce na presença de outros livros, em relação e em confronto com outros livros”.
Ainda assim, por mais que “Se um Viajante…” tenha se firmado no cânone como um lapidar romance pós-moderno – ou seja, um romance sobre o “romanesco” – há de se lembrar que ele é escrito pelo mesmo autor que tem uma coleção de ensaios chamado “Por que Ler os Clássicos”, e que curou compilações de fábulas tradicionais italianas e contos fantásticos de seus autores favoritos com dedicação tão clara quanto a destinada aos seus próprios romances. Em Carax, também, a modernidade é uma condição inexorável que tem como próprio fundamento de existência o confronto com o clássico, com o paradigma, com o desejo irremediável de se refilmar Aurora, sabendo que Aurora é irrefilmável. Não é, portanto, questão de retomar a máxima de Rimbaud literalmente em seu “eu é um outro”, mas afirmar que não há eu sem a existência, a presença, a relação e o confronto com os outros. Se Rimbaud se encaixa de alguma forma em Holy Motors, é somente na companhia da máxima sartreana de que “o inferno são os outros”.
Pois Holy Motors, como toda paródia e todo sintoma de modernidade, é um filme infernal. Se retomarmos o sentido grego do termo “paródia”, resgatado por Giorgio Agamben no fundamental “Profanações”, a apoteose musical no encontro de Lavant com a personagem de Kylie Minogue se mostra de fato inevitável: paródia como separação entre canto e palavra, de forma que as modulações e acréscimos melódicos dos rapsodos (os narradores gregos) dos poemas homéricos joguem contra ou ao lado do canto (para ten oden). “(…) a paródia designa a ruptura do nexo ‘natural’ entre a música e a linguagem, a dissolução do canto pela palavra. Ou então, pelo contrário, da palavra pelo canto. (…) O rompimento do vínculo liberta um pará, um espaço ao lado, em que se instala a prosa. Mas isso significa que a prosa literária traz em si o sinal da separação do canto. O ‘canto obscuro’ que, segundo Cícero, se ouve no discurso em prosa é, neste sentido, um lamento pela música perdida, pelo desaparecimento do lugar natural do canto”. O cinema permanece lá, o filme roda no projetor, mas os espectadores há muito adormeceram.
Por outro lado, se, na literatura, o narrador permite essa distância entre o ser e o ser outro – distância na qual existe a obra de Machado de Assis, por exemplo – o cinema é um tanto mais traiçoeiro. Não é possível ser sem mostrar, de forma que Holy Motors não é somente uma paródia do que ele não é; ele é também tudo que ele parodia. O que o pastiche gera é a consciência da “inatingibilidade de seu próprio objeto” (Agamben), de que todos esses outros filmes que Holy Motors também é são os filmes que ele não pode ser por completo. Um filme em vídeo sobre o cinema em 35mm. “Frente ao mistério, a criação artística só pode acabar em caricatura, no sentido em que Nietzsche, no lúcido limiar da loucura, escrevia para Burckhardt: ‘Sou Deus, fiz essa criatura; preferiria ser professor na Basiléia em vez de ser Deus, mas não consigo levar tão longe meu egoísmo’. É por uma espécie de probidade que o artista, sentindo que não pode levar seu egoísmo a ponto de querer representar o inenarrável, assume a paródia como a forma própria do mistério”, avançava Agamben. Holy Motors é o oposto simétrico de A Árvore da Vida, de Terence Malick.
A jornada de Oscar – talvez a representação mais próxima que Ulysses já tenha recebido no cinema – é basicamente o enfrentamento com o outro. Enfrentamento que afirma o que não se é. Há algo mais profundo em jogo, porém, do que a simples questão de identidade ou individualidade, onipresente – com justeza – em quase todo texto escrito sobre o filme. Na resposta a Angelo Guglielmi, Calvino já se fazia, retoricamente, a pergunta: “para a superação do eu podemos apostar na multiplicação dos eus?”. Em uma das mais comoventes narrativas abortadas do filme, Denis Lavant se transforma em um pai que busca sua filha em uma festa. Pouco antes, desavisados de qual papel ela terá no filme, vemos uma imagem da menina jogando purpurina sobre o próprio cabelo. A menina mente. Diz ter adorado a festa, mas todos sabemos – e logo seu pai também saberá – que ela carrega apenas os rastros da aparência dessa festa, embora nunca nos seja mostrada sua espera interminável na escada, do lado de fora da casa da amiga. Quando o pai pergunta o motivo de ela ter mentido, ela diz que se a verdade não tivesse sido descoberta eles ainda estariam felizes naquele momento. “O seu castigo”, ele diz, “é ser você e ter que conviver com isso”.
Mas a oposição maior, e que marca de alguma forma (mais ou menos direta, dependendo do caso) todas as pequenas narrativas de Holy Motors, é entre o que está vivo e o que está morto. Essa toada central se espalha, naturalmente, para a relação do pastiche com o gênero: quando algo se torna “típico”, representação inequívoca da convenção, é sinal de que já morreu. Essa infiltração da morte começa logo em uma das primeiras personagens – a velha pedinte que tem medo de nunca conseguir morrer – passa por diversos assassinatos e suicídios, e termina por se condensar já próximo ao final do filme, em uma frase do diálogo entre o velho moribundo e a jovem sentada à sua cama, em uma das sequências finais vividas por M. Oscar (diálogo muito inteligentemente exposto em seu pacto de ficção quando o impacto emocional ainda reverbera na sala de cinema): “nada nos faz sentir mais vivos do que a morte dos outros”.
Se Holy Motors é um filme assombrado pela morte – seja ela do corpo, do sagrado, do cinema, do clássico, dos gêneros, das câmeras 35mm -, como Carax é assombrado por um estatuto já passado e inatingível de relação com o mundo, é porque somente os vivos podem reconhecer o luto. Nem que seja o luto como atividade cotidiana, como todos os papéis sociais perdidos nos breves encontros que apontavam para infinitas possibilidades de vidas porvir, interrompidas em nome daquela única que se pôde ter (como a personagem de Edith Scob que coloca uma máscara justamente ao sair do trabalho, como que seguindo para outra ficção – sua vida pessoal dentro do filme? Sua vida fora do filme? A Dra. Génessier de Les Yeux sans Visage?). E desse luto, tão necessário, pouco de prático se pode extrair, a não ser “a beleza do gesto” – como diz Oscar, talvez no mais belo momento de um filme tomado por momentos belos. “Melhor dizer que aqui não se trata do ‘inacabado’, mas sim do ‘acabado interrompido’, do ‘acabado cujo final está oculto ou ilegível’, tanto no sentido literal quanto metafórico”, afirma Calvino. A beleza do gesto. A ficção não é a possibilidade de driblar a morte, como a arte romântica tanto afirmou como tentativa de superação de seus próprios limites, mas justamente de se colocar de frente para ela, para, com isso, afirmar-se em diferença. Um embate com o sagrado só pode existir pela profanação, pela deformação das palavras pelo canto, pela afirmação da diferença. Estamos vivos e, justamente por isso – citando Calvino, derradeiro – “vivemos num mundo de histórias que começam e não acabam”.