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Hahaha (하하하, 2010), Hong Sang-soo

Publicado originalmente na Cinética em Janeiro de 2013.

Saúde!

Hahaha, como todo filme de Hong Sang-soo, é um filme de pares. Em primeiro lugar, há os pares em tela – os casais que se encontram, desencontram e reencontram, ou o próprio par de narradores. Toda a mise en scène do diretor se concentra em fazer da câmera o terceiro vértice de um triângulo formado com dois atores que contracenam, frequentemente dispostos como um triângulo de fato, como nos primeiros filmes falados. Sempre que um terceiro personagem está em cena (e as poucas cenas com número maior de atores normalmente são divididas internamente em blocos, como a zoom muitas vezes acentua, fechando neste ou naquele par ao longo da ação), ele serve como testemunha/propulsor do constrangimento dos outros dois naquele momento de tentativa (ou manifestação) de intimidade. A raiz do cinema de Hong Sang-soo se concentra no esforço e nas dificuldades de um homem em levar uma mulher pra cama (“a origem do mundo”, explicitava Noite e Dia com o quadro de Courbet), e esse objetivo final vem à superfície no simples e recorrente gesto de enquadrar dois personagens em interação – seja um homem e a mulher que ele passou a desejar; um homem e sua mãe; um homem e seu amigo de longa data; um homem e um velho herói do passado coreano, conversando de maneira prosaica em um banco de praça. A tensão entre os dois é onipresente e indisfarçável.  

Em segundo lugar, há a recorrência de uma estrutura bifurcada. A filmografia de Hong Sang-soo se concentra na reinvenção de um padrão que conecta “dois filmes diferentes dentro de um mesmo filme”, para que uma metade da história possa incidir e agir sobre a outra, ao mesmo tempo em que sofre sua ação. Hahaha, nesse sentido, é o trabalho mais rebuscado de toda a carreira do diretor. Pela primeira vez na obra de Hong Sang-soo, há uma radicalização da influência mútua dos dois braços da narrativa, alternando de fato entre dois narradores (cujas vozes frequentemente se misturam), acentuando os vazamentos de uma história na outra a cada novo brinde: saúde! Se na filmografia pregressa do diretor esse gesto de colocar um espelho frente a outro espelho era uma abstração que o espectador só podia completar intelectualmente, a posteriori e à distância, em Hahaha ele é o próprio tema do filme.

Essas progressões autoristas são necessárias pois, embora os filmes funcionem perfeitamente de forma individual e sejam sempre convidativos aos recém-chegados, a visão em conjunto revela um artista extremamente preocupado com o corpo de sua obra, sintoma da criação cinematográfica como um gesto contínuo (diria até uma pesquisa) do qual os filmes são também recortes, instantâneos de uma duração (o cinema de Hong Sang-soo sempre teve algo de científico). Passando delas, porém, podemos chegar ao terceiro par, que se revela de maneira cristalina neste Hahaha: na relação com o espectador, também há duas camadas diferentes, que correm simultâneas ao longo da projeção. A primeira camada é a da absoluta excelência narrativa: Hahaha é um filme excepcionalmente prazeroso de se assistir, não só pelo apuro de suas gags – um filme verdadeiramente engraçado, em uma proposta de humor que o diretor aprimora a cada novo trabalho – mas também pela maneira como esses tempos fortes e quase constantes são cercados por uma minuciosa amarração de várias linhas de elementos que se repetem e conferem sentido ao universo dramático. É um filme de entretenimento, no sentido literal do termo: que dispara incessantemente pequenos sinais e possíveis conexões que mantêm a percepção atenta, ocupada com a constituição deste impressionante bric-à-brac.

Se em dado momento nos identificamos com o protagonista e sua impressão de que “Tongyeong é uma cidade pequena”, é porque todo o filme traz a aparência de um circuito fechado, em que os pontos necessários estão conectados, mesmo quando os próprios narradores não estão cientes disso: a mesma baía, a mesma montanha, a mesma mesa no mesmo restaurante, a mesma rua, o mesmo motel, a mesma maneira de enquadrar. Os mesmos elementos testemunham as reviravoltas das diferentes histórias; por isso, acreditamos. Questão de objetividade; ciência. No contato com Hahaha, a primeira camada a ser atravessada, e que convida a uma plena e satisfatória instalação, grita a existência deste mastermind: o sujeito a controlar em absoluto todos aqueles encontros, todas aquelas digressões, todos os aparentes desencontros que levarão apenas a novos encontros, as fugas de cena que criarão outras cenas – mesmo que, para isso, seja necessário pular o muro da casa da mulher que cobiça. É, portanto, a camada onde se manifesta a autonomia do narrador.

Nisso, porém, Hahaha traz um dado incontornável: os narradores estão expostos em tela, e essa impressão de uma narrativa fechada, em que todos os pontos fazem sentido, é também uma forma de nos seduzir, de “nos levar para a cama”. Não à toa, os dois narradores são um cineasta e um crítico de cinema, aprofundando a sensação de espelhamento entre o gesto do filme e o gesto dentro do filme (e, quem sabe, entre o gesto da crítica e o gesto dentro da crítica). O filme espelha a ação dos narradores masculinos, que buscam contar a melhor história para impressionar as sempre crentes e benevolentes personagens femininas, sedentas por qualquer possibilidade de conexão, pelo vislumbre de sentido em um mundo caótico e absolutamente aleatório. Se os homens são os narradores, as mulheres são os espectadores. É com elas que o filme nos identifica. Diante da ausência de sentido, basta a aparência do sentido, os sistemas e articulações que fazem crer que tudo que é “era pra ser”, como se a vida fosse também a articulação em tempo real de uma história bem contada – as saias que migram de uma história a outra; o boné que passa de cabeça em cabeça; o almirante que salta da gravura e sopra ao narrador o sentido da vida. Basta perceber que se namorou um cara do exército, outro da marinha e agora um da aeronáutica para encontrar, nesse padrão aleatório, o sentido da vida. O que importa é o desejo de encontrar esse sentido.

É aí que se manifesta a segunda camada na relação com o espectador, que Hahaha traz à superfície como nenhum outro filme de Hong Sang-soo: a aparência de ordem e de controle absolutos no mundo ficcional, e a busca desesperada do espectador por ela, serve apenas para ressaltar a ausência completa de ordem no funcionamento do mundo real (que se manifesta no filme). A associação frequente do cinema de Hong Sang-soo com o de Eric Rohmer faz pensar que, por mais que as equações tragam os mesmos elementos, os resultados ao final carregam sinais contrários. Hahaha é um conto moral, sem a moral do conto. É curioso lembrar da defesa de Rohmer da câmera imperceptível, na sua célebre entrevista aos Cahiers du Cinema quando do lançamento de Minha Noite com Ela (1969), e perceber a progressão do trabalho de zoom de Hong Sang-soo – mais frequente e incisivo a cada filme, ao mesmo tempo que vai progressivamente perdendo seu aspecto zombeteiro, comentarista, e sendo assimilado com maior naturalidade. Mas a naturalidade revela apenas o que há de menos natural na transparência… a transparência é tamanha que revelou as engrenagens quebradas por trás da cena. Com o perdão do etnocentrismo retórico, se Rohmer é um cineasta católico, Hong Sang-soo é um cineasta “ateu”.

Hahaha entorta toda aparência de sentido à falta de sentido, toda definição ao indefinível: seus professores nunca deram uma aula; seus cineastas nunca fizeram um filme. Mesmo o momento ao piano carrega apenas a lembrança de um belo improviso que, diz o narrador (e cabe ao espectador embarcar na história sempre consciente de que alguém a conta), infelizmente já foi totalmente esquecido. Daí as máximas conflitantes, polvilhadas ao longo do filme, sobre “ver apenas o que se conhece”, “ver melhor o que não se conhece”, “ver com os próprios olhos”, “ver apenas o bem nas coisas” ou, como diz Jo Moon-kyeong (Kim Sang-kyung), “conheço o que vejo, tanto quanto vejo”. Daí a discussão sobre a justeza em dar nome a uma flor sem saber exatamente o que é esta flor.

Nesse sentido, por mais que visualmente o cinema de Hong Sang-soo nos remeta a Rohmer – e as aproximações no cinema dependem muito dessa remissão, desse “parecer” – em seu trinômio de cama-mesa-rua (como uma vez bem definiu Juliano Gomes), e se proponha efetivamente como uma continuação dele, Hahaha é na verdade a consumação mais acabada e perfeita de um sentimento de mundo mais presente em uma tendência frequentemente vista como “pós-moderna” no cinema norte-americano, que traz à frente os irmãos Coen, seguidos por filmes tão distintos como Donnie Darko (2001) e There Will Be Blood (2007). São todos filmes que se apropriam de uma aparência já absolutamente assimilada pelos espectadores (no caso dos americanos, o cinema de gênero; no caso de Hong Sang-soo, a simplicidade de seu próprio cinema, com filmes que podem, todos, ser reduzidos a uma mesma sinopse, e que se alimentam de convenções tão antigas quanto o próprio cinema falado) para, sorrateiramente, tirar o chão que sustenta esse conforto. Nos filmes de Hong Sang-soo, nos estabacamos com um sorriso… mas carregamos, depois, as mesmas hematomas.

O sentimento em relação ao mundo pode ser o mesmo, e em si nada novo, mas o que torna Hong Sang-soo um cineasta notável – e tão diferente dessa corrente americana, no que ela tem de melhor e de pior – é sua atitude diante desse sentimento. Pois diante de um filme de Hong Sang-soo, o gesto do espectador – como, veremos ao final, as decisões das personagens femininas – é, ao mesmo tempo, de encantamento voluntário e de extrema autonomia. Os narradores acham que sabem, mas a história que se desenrola em tela nos traz falhas e deslocamentos que entram em choque com essa onisciência. Se há um processo de sedução em jogo, ele é sempre de mão dupla: assim como os narradores seduzem seus ouvintes, a cumplicidade dos espectadores é também uma poderosa arma de sedução. O almirante – que, diz a História, salvou a Coréia, e é visto não só como um herói, mas um herói sagrado – aparece em um sonho para Jo Moon-kyeong e lhe passa uma pílula de sabedoria… mas tudo que ele pode fazer é transformar essa pílula de sabedoria em uma cantada. A diferença é que, nos filmes de Hong Sang-soo, a cantada vai funcionar, e terminar com um ridículo (mas, é crucial: o ridículo da proximidade, nunca o da distância) pedido de casamento após o sexo, com direito ao casal chorando abraçado, na cama do motel. A diferença é que, ao final, um telefone vai tocar, abrindo a tal “moral do conto” a toda uma outra história que o filme se negará a contar, e que seguirá martelando a cabeça do espectador, a quem é garantida a mesma autonomia reservada à mulher que disca o número que deseja em um telefone, simplesmente porque encontrou (ou resolveu dizer ter encontrado) um boné em casa. A diferença é que Hahaha não é somente sobre um homem tentando levar uma mulher pra cama, mas sobre o antes e o depois: os percursos deste homem e desta mulher até aquele encontro, e o que este homem e esta mulher decidem fazer quanto a isso no dia seguinte.

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