Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2012.
A imagem das palavras: os desgastes da adaptação em Djalioh
Não faz muito tempo, escrevi um artigo para o catálogo da retrospectiva da Semana dos Realizadores que identificava um traço recorrente nesta nova geração de filmes brasileiros: o processo criativo como tema das próprias obras. Por geração, não me refiro à idade dos realizadores, mas sim a um conjunto de filmes que surgem em um mesmo momento e contexto e terminam por dialogar de maneira mais direta entre si do que com outras fatias da produção – basta pensar que um dos que lidam mais frontalmente com o tema seja justamente O Último Romance de Balzac (2011), de Geraldo Sarno, e que ele tem muito mais ressonância e identificação no encontro com Estrada para Ythaca do que com o trabalho recente de Cacá Diegues, para ficar com um companheiro geracional de Sarno, assim como Estrada para Ythaca (2010) tem mais relação com O Último Romance de Balzac do que com 2 Coelhos (2012), filme de estréia de um diretor que surge mais ou menos no mesmo momento. O compartilhamento temático é digno de nota, pois embora o processo criativo sempre tenha tido uma presença forte na produção de poesia brasileira, no cinema ele nunca rendeu mais do que iniciativas individuais e esparsas.
Caso o tivesse visto antes, teria destaque nesse texto Djalioh, filme de Ricardo Miranda que teve esparsas exibições em festivais (aí incluída a própria Semana dos Realizadores, em 2011), e agora tem um mais que bem vindo período de exibição na íntegra pela internet, no site da Alumbramento (existe todo um outro artigo a ser escrito sobre a absurda morosidade dos diretores em perceber a necessidade de simplesmente mostrar as obras, que encontra uma possibilidade de escoamento em iniciativas como esta… mas, por ora, falemos do filme, e aproveitem a chance de vê-lo). Adaptação de “Quidquid Volueris – estudos psicológicos”, conto de Gustave Flaubert, de 1837, Djalioh parece mais próximo em seu trabalho de versão literária para o cinema daquilo que fez David Cronenberg com o Naked Lunch (1991), de William Burroughs: incorporar ao filme o próprio processo de adaptação (ou, no caso de Cronenberg, a angústia da escrita), a ponto de ele se tornar o fio que conecta os fragmentos de encenação do material tirado do texto original.
Em Djalioh, as palavras são personagens, como os personagens são palavras. Esse desvio de foco já fica claro logo nos primeiros minutos de filme. Começamos com a voz de Helena Ignez em off, sobre uma montagem de planos de galhos de árvores. A montagem, porém, é feita por sobreposição de imagens, e os galhos terminam por ocupar toda a tela, como uma parede que impede a passagem. O impedimento, porém, não é natural ao mundo; ele é criado deliberadamente com um artifício de montagem. O cinema é a ferramenta de ilustração da dificuldade que Ricardo Miranda cria para si, e que estampará todo o resto do filme. Suas imagens são o testemunho da dificuldade de sua criação.
Em seguida, o rosto de Helena Ignez toma a tela, entrevisto pelos reflexos de uma taça de vinho. Localizamos aquela voz que se sobrepunha ao “caminho de dificuldade” do começo do filme, e só então somos apresentados às personagens. Ironicamente, vemos apenas seus pés, caminhando de lado a outro. As personagens de Flaubert, escritor especialmente notável por seus talentos descritivos, são reduzidas a imagens de pés que caminham por diferentes espaços. O filme é um espaço que elas podem habitar, mas o cinema, arte do mostrar e incapaz de descrever qualquer coisa que não ações, se impõe aqui na escolha de quem mostra e de como mostra: dos personagens, interessa primeiro a travessia, a movimentação que leva de um lugar a outro, o passo a passo, ou os próprios pés; o protagonista, aquele digno do close up, da identificação em primeiro plano, é o próprio narrador.
Djalioh realiza um cruzamento improvável, quase sacrílego, entre o “oratório cinematográfico” de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, e a instalação deliberada na interseção entre cinema e literatura de Marguerite Duras. Não se trata, portanto, exatamente de metalinguagem, mas de trazer ou traduzir, para o cinema, a dimensão material da palavra. Se quisermos usar a divisão linguística tradicional, estamos mais próximos de uma metalinguagem incorporada do que ordenada, pois os signos carregam uma dupla dimensão, falando, concomitantemente, do significado que eles portam e do processo de sua construção. O conteúdo do texto é tão importante quanto a presença do texto.
As duas musas de Djalioh (Barbara Vida e Mariana Fausto) são, igualmente, duas personagens que o protagonista-título (Otávio III) cobiça, separado delas pelo vidro da janela (ou pelas grades do zoológico, em uma associação que o filme faz, em um de seus melhores momentos, entre o homem e um grupo de orangotangos), como são encarnações da própria palavra, inatingível, separada do diretor pelo vidro da objetiva da câmera. Retomando o pensamento de Christian Metz, Serge Daney escrevia, em texto sobre o cinema de Straub e Huillet, que “a tradução linguística do plano de um revólver não seria a palavra ‘revólver’, mas alguma coisa como ‘eis um revólver’”. O filme faz o caminho inverso, transformando as imagens sugeridas pelo texto de Flaubert (uma vez que as imagens concretas de um texto também não podem ser esquecidas: desenhos de tinta em uma folha de papel) em enunciação, sabendo que cada signo não será somente um signo, mas também o ato de mostrá-lo. Em Djalioh, cada palavra se contorce com a dor do significado, como agoniza Bovary na descrição de Flaubert dos efeitos do cianureto.
Mas mesmo esse processo de adaptação – de criação, em última instância – não se separa de uma vivência que, seletivamente, media, seleciona, ressignifica os signos da obra (ou do mundo) original. Toda adaptação é uma espécie de curadoria e Djalioh também incorpora, às suas imagens, a aparente arbitrariedade desse processo: o processo de adaptação é como uma piscina de decantação, trazendo ao visível as impressões que, após toda a descaracterização inerente à versão em imagem, teimaram em flutuar. No cinema, as imagens não espelham necessariamente o que foi sugerido pelas palavras, mas trazem no corpo os efeitos desse processo de decantação. Se boa parte dessa mesma produção a que me referia no começo do texto tematiza a impossibilidade de suas próprias ambições (“fracasso” e “erro” são palavras hoje mais corriqueiras do que “plano” ou “montagem”, por exemplo), Djalioh se concentra no desgaste do processo, desgaste este que é necessário para que, ao fim, exista obra (e não apenas um projeto fracassado de obra). É um filme sobre os sulcos que estampam essas palavras desbastadas pelo tempo, pela técnica (embora, neste aspecto, existam limitações que perturbam um pouco o embarque pleno na proposta do filme), pela memória, pelo corpo de quem fala, e pela fricção inerente – aqui, pensada como próprio fim – do desejo primeiro de vertê-las em imagens.
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