Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2012.
A encruzilhada do presente
Em Busca de um Lugar Comum embarca em diversos city tours pela Rocinha, promovidos por agências de turismo quase exclusivamente para estrangeiros. O filme nasce do tranco – se não do choque – de levar olhos locais para o que é normalmente reservado a estrangeiros – estrangeiros não só de outro país, mas também os próprios moradores locais, em geral indetermináveis no cotidiano da cidade baixa carioca, de onde (como as subidas deixam claro) vem o olhar do próprio filme. Esse primeiro gesto já revela um senso de oportunidade admirável do documentarista, que percebe um espaço até certo ponto ainda inexplorado, ainda virgem aos olhos do cinema, a despeito da profusão absoluta de câmeras estrangeiras por ali.
Há, portanto, uma cena pronta, e essa percepção de que um cena já existe e espera, pacientemente, a chegada do cinema é ponto de partida para vários dos melhores documentários – ao menos os que mais tradicionalmente definem/dialogam com o cânone, a tradição do documentário, que estabelece sua diferença para a reportagem. Uma vez detectada a vigência dessa cena, basta atenção e paciência para que os personagens, os conflitos e as contradições cheguem à superfície e se ofereçam ontologicamente à organização da montagem. Ao cinema cabe a responsabilidade do registro e organização da História, mas o cinema brasileiro permanece (menos do que antes, mas ainda sim) insuficiente para os processos pelos quais passa o país. Em Busca de um Lugar, nesse sentido, é um filme que precisava ser feito – evidência que fica patente nesta “cena” que espera para ser filmada.
A palavra “cena” é importante, e aqui ganha um sentido perversamente auto-consciente, pois é assim que as agências de turismo montam esses passeios: dos jipes camuflados que sobem o morro ao discurso piedoso pelos nativos “regenerados”, percebe-se a extrema consciência de todos os atores – turistas, guias e moradores – no engajamento em uma proto-ficção, um engodo que sacia uma mesma sede que busca diferentes sabores, seja o da impressão de realidade (o inevitável subtexto de guerrilha urbana quando se adentra um labirinto desconhecido – os passeios não são muito diferentes de um safari ou de uma partida de paint ball), o da narrativa de redenção (os artistas que vendem “artesanato” – aquela velha palavrinha burguesa que baixa o preço das obras de arte que eles desejam comprar), o do testemunho da pureza (as crianças que batucam em baldes vazios) ou o do conhecimento sociológico in loco. Vendidas em um mesmo pacote, são, todas elas, ficções forjadas pela lógica do consumo, do sujeito que paga um preço para receber um determinado estímulo e se sente lesado se essa promessa não for cumprida. É, portanto, uma cena que pode ser qualquer coisa, menos uma cena de cinema.
O que difere a câmera de Mussel, indistinta entre todas aquelas outras câmeras e igualmente obediente em desviar os olhos se calhar de passar por ali um rapaz com um fuzil nas mãos, não é somente a sensibilidade que codifica esse olhar. Em Busca de um Lugar Comum é um filme irmão de Pacific (2010), de Marcelo Pedroso (não à toa, um dos montadores do filme), por reconhecer tanto a cena já construída, seja ela na favela ou em um cruzeiro de navio, quanto a autonomia de mise en scène que se apresenta hoje também no olhar comum, presente aqui nas fotos e vídeos feitos pelos próprios turistas e incorporados à montagem. O que justifica essa outra câmera, esse olhar que podemos dizer ser o do filme (e que, como prova Pacific, a rigor sequer precisaria de uma câmera para existir, podendo simplesmente se apropriar e contaminar imagens alheias) é justamente não compactuar com esse engodo do consumo. O gesto cinematográfico em Em Busca do Lugar Comum está em não entregar o que dele se espera.
Mas o que, de fato, o filme entrega? Quando chegamos à pergunta de ouro, o texto – assim como o filme – se vê em uma encruzilhada. Por um lado, há a necessidade do artifício, a percepção bastante equivocada de que esse lugar comum só é possível em um momento dó de peito em que o filme deixará de olhar, de mostrar, e oferecerá ao espectador também a sua própria ficção: as várias fotos dos turistas estrangeiros se fundem em um mesmo plano, coabitando os limites de uma mesma tela, com línguas diferentes que giram em surround. Em Busca de um Lugar Comum traz dois ou três pequenos espetáculos feito este, e nesses momentos fica a impressão de que o pacto de ficção que o filme acredita ser capaz de oferecer é, provavelmente, mais cego à realidade que nos mostra do que o engodo entre agências, comunidades e turistas. Em primeiro lugar, por o artifício auto-suficiente lembrar muito mais o episódio de Alejandro Gonzáles Iñárritu em 11 de Setembro (2002) do que qualquer coisa que se pareça remotamente com bom cinema (para me poupar o atrevimento de tocar no nome de Chris Marker); mas, principalmente, por a necessidade do artifício obrigar o crítico a repensar os três primeiros parágrafos que o filme o entusiasmou a escrever… pois se é preciso recorrer ao artifício, no fim das contas é porque não há a percepção de que esse lugar comum já existe – de que aquelas pessoas reunidas sob uma mesma laje, mirando uma mesma vista, já encontraram e habitam esse espaço comum, e que ele se concretiza para o espectador na simples presença da câmera de Mussel ali. Estaria, o filme, buscando tão obsessivamente construir uma cena que acabou não percebendo que ela já estava pronta, à sua frente? Não é possível compactuar com essa breve decepção sem relevar todo o resto do filme, mas é fato que Em Busca de um Lugar Comum é um título que só funciona se carregado de ironia.
Pois há, também, a potência inexorável e preciosa do desconforto proposto por todo aquele material: as crianças da comunidade pacificada, sentadas lado a lado no meio fio, cantando louros à PM; o discurso pronto generalizado (novamente, a fidelidade à cena, a um roteiro) que faz com que os lobos em pele de cordeiro sejam, também, cordeiros em pele de lobo; os pacotes de turismo alternativo criados pelos próprios moradores e que trazem dados e fuzis que as agências de turismo, a UPP e o Estado do Rio (que, muito ironicamente, é o principal provedor do filme) escondem atrás das fachadas coloridas dos barracos que margeiam as ruas das favelas, etc. Há uma riqueza neste material e uma precisão nesta organização que rendem não só registros notáveis, mas também fortes momentos de cinema.
Não entregar o produto que se espera é, na verdade, uma forma de crítica. Se rimos do jovem de dreadlocks quando ele conta das crianças que tocam berimbau para avisar aos traficantes que a polícia está chegando, esse riso recai sobre todo pacto de ficção, todo engodo necessário para que uma sociedade tão complexa quanto a carioca siga existindo em aparente harmonia. São engodos – crenças, se preferirem – necessários também ao filme, que tem que escolher onde colocar a câmera, e ao crítico, igualmente ciente da necessidade de se escolher um caminho, uma proposição de mundo, quando sabe que o filme, também, em toda sua “busca”, encontrou de fato um lugar justo para se colocar naquele último plano em que a câmera pára, e observa um comandante da UPP se afastar com o dono de uma agência de turismo. Se há, de fato, uma busca, ela começa não pela definição de para onde se vai, mas de com quem não iremos. Neste momento, se reafirma a impressão de que o cinema brasileiro contemporâneo parece mais marcado pelo que não filma, pelo que se nega a filmar, do que pelo que de fato filma. Em uma vivência saturada de imagens, o artista deixa de ser criador e se torna curador. Seu gesto se resume ao rigor de sua seleção. Talvez o filme realmente necessário começasse ali, naquela encruzilhada, mas talvez também esse filme ainda não seja possível. Em Busca de um Lugar Comum é o filme possível neste momento, como esta é a crítica possível, estas são as políticas possíveis, esta é a cidade possível, estes são os encontros possíveis, este é o presente possível. E o possível é algo que ainda desconhecemos por completo.