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Tomboy (2011), Céline Sciamma

Publicado originalmente em antigo blog pessoal em Novembro de 2012.

A androginia talvez seja um dos redutos menos explorados sistematicamente da fotogenia no cinema (Ossos e I’m Not There como as últimas “pesquisas” que me vêm à cabeça), e o que existe de potente em Tomboy, de Céline Sciamma, vem justamente daí. Mais do que o simples fascínio pela denotação sexual dos ângulos e movimentos do corpo, a androginia aqui é, na verdade, o limite da ficção: Laure (Zoé Héran) se muda com a família para um novo prédio, e toma isso como um convite para uma vida inventada, apresentando-se a todos como Mikael, deixando sua realidade biológica dentro de casa e assumindo um disfarce social da porta pra fora que reflete seu real desejo de identidade.

O interesse do filme é não só tensionar ao extremo a possibilidade de essa farsa se arrebentar (e desde o princípio é claro que isso vai acontecer), mas principalmente perceber os momentos de quase quebra, em que o ator (Laure, não Zoé Héran) acaba transbordando pelas fissuras do personagem. Esse transbordamento é o limite entre o documentário e a ficção dentro do próprio filme, uma vez que a elasticidade da tolerância à encenação está justamente na sua imposição sobre a realidade: enquanto Laure brinca de peito nú entre os meninos, a vida segue; mas quando ela arruma sua primeira namoradinha – que, naturalmente, não sabe estar apaixonada por alguém nascido como garota – é necessária a intervenção “higienizante” na diegese, para separar o trigo do trigo.

Tomboy é cheio de reveberações dessa primeira questão – a maneira como Jeanne aproveita a ficção de Laure para criar a sua própria; os jogos de adivinhações antes de dormir – adornadas por uma percepção que se torna cada vez mais latente: talvez não exista diretor francês mais influente para o jovem (e no não tão jovem) cinema europeu do que Maurice Pialat. Céline Sciamma usa o universo infantil como mapa para ir buscar as paredes de patchwork de L’Enfance Nue (1968), para combiná-las com a mise en scène cuidadosamente espatifada de um Loulou (1980). Falta, porém, justamente a desorientação constante que gerava o sublime desconforto do cinema de Pialat: a sensação de que a qualquer segundo o filme pode implodir seu próprio sistema e se reapresentar de uma maneira completamente renovada – o lugar em que Pialat se encontrava com Brakhage. Falta, justamente, o gesto radicalmente criador.

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