Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
Os nichos do conforto
Algo cheira a protocolar logo nos primeiros minutos de Olho Nu, filme-biografia de Joel Pizzini sobre Ney Matogrosso feito em parceria com o Canal Brasil. Pois basta chegar a primeira performance do cantor para percebermos que nada, nada pode ser tão interessante cinematograficamente quanto a simples presença de Ney Matogrosso, sua maneira de encarar a câmera, de se portar como um elemento de cena ao mesmo tempo totêmico e orgânico, de se mover, de projetar sua voz. O material de Olho Nu pede desesperadamente um filme de cena – e é inevitável pensarmos na maneira como Pedro Costa extrai isso de Jeanne Balibar em Ne Change Rien (2009), por exemplo –, seja quando Ney Matogrosso está no palco ou vestido em plumas e escamas douradas em meio à natureza. Mas há um compromisso prévio do próprio filme em ser diversas outras coisas, em tentar dar conta de uma biografia, dos compromissos visuais de Pizzini com seu próprio estilo, de um processo de formação, dos bastidores desta cena que acaba escorrendo, tristemente, para as bordas.
Não bastam as canções, que serão cortadas e recortadas ao longo do filme. Não basta o passado fantasmático ou o presente imediato, a presença de fato. Olho Nu precisa ser muitos e, desses muitos, acaba não construindo a sensação de inteireza que as biografias inevitavelmente procuram. Essa inteireza, porém, é mais questão de síntese do que de panorama. Por mais que a contextualização histórica faça o bom esforço de situar o choque que o personagem encarnado por Ney Matogrosso representava com o status quo vigente à época, nada pode fazer isso tão bem quanto a imagem escavada do próprio Ney, com o sovaco ostensivamente imposto à câmera em uma entrevista à Globo.
Olho Nu não tem esse atrevimento, pois o repertório de cinema “experimental” que Pizzini trabalha aqui já foi, há muito, curvado ao status de convenção – algo que não deixa de ser curioso para um diretor que, em um filme como Dormente (2005), por exemplo, já conseguiu extrair enorme expressividade de pouquíssimos elementos. Os reflexos em espelhos, em poças d’água, em vidros coloridos de janelas – a banalização das tais “imagens especulares” de Deleuze – hoje já têm sentido absolutamente esvaziado, incorporado pela televisão e pela publicidade, e que o filme em momento algum consegue subverter ou ressignificar. Aqui, essa sensibilidade, essa predileção pelo incomum que vemos nas imagens fortes de Caramujo-Flor (1989) que aparecem ao longo do filme, parece não ter se atualizado, não ter percebido que aquelas imagens que permanecem fortes dependem de um contexto trazido pelo grão da película, os riscos, as cores, e que elas não terão a mesma força se simplesmente reproduzidas hoje, época em que a alta definição lhes é testemunha de sentidos já muito diferentes e dirigem aquela estranheza à comodidade de uma não tão nova gaveta.
Há uma história nessa materialidade dos registros que grita por conexões, uma vez que Ney Matogrosso trabalhava com a consciência direta dos meios de registro, olhando frontalmente para a intimidade da câmera quando lhe diziam que isso não era permitido. Essa história de presenças, de fatos audiovisuais, é abandonada em nome do velho registro biográfico que ignora esse contexto (o fato de que Ney só é enquanto presença cênica) para assumir aquela velha lógica que busca encontrar a pureza do artista, como se toda árvore não importasse como árvore, mas apenas pela seiva que carrega dentro de si. Mas essa necessidade do registro biográfico entra em curto quando diante de um personagem que não vê intervenção histórica possível que não a existência no presente. “Não tem sentimentalismo na história. Não estou preso ao passado”, diz Ney Matogrosso em determinado momento. Entretanto, o filme insistirá na lógica da origem, de voltar ao nascimento do artista como se esse dado pudesse explicar o inexplicável, de vasculhar a intimidade do artista em planos de steadycam que varrem espaços como fazem hoje as câmeras do Globo Repórter, em época em que aquele sovaco, aquele glorioso e insolente sovaco, já foi há muito banido dos manuais de bons costumes de nossas emissoras de televisão.
É interessante que Loki (2008), filme de Paulo Fontenelle também para o Canal Brasil, fosse visivelmente tão mais convencional, e sensivelmente tão mais forte. Pois lá, a estratégia dos talking heads que vasculhavam a intimidade de Arnaldo Baptista de fato ajudava a compor uma imagem (representada pela tela em branco que Arnaldo pintava ao longo do filme) que tinha na fragilidade dessa intimidade um componente indispensável. Ney Matogrosso, porém, é bicho de outra casta. Sua carranca é impenetrável; sua presença, improfanável – afinal, já estamos de partida no reino do profano. E não há profanação possível quando o compromisso do cinema não é mais que a inserção em um nicho de conforto.