Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2012.
As formas da morte
Em Diário de uma Busca (2010), Flávia Castro faz uma radiografia de como sua vida foi diretamente afetada pelo envolvimento de seu pai com as guerrilhas políticas latino-americanas a partir da década de 1960. A guerrilha, esse desdobramento ativo de um posicionamento ideológico e do abraço a uma utopia, era a malaise daquele momento histórico, o leviatã que engolia jovens cheios de vida e potência – e é raro encontrarmos filmes que voltam a esse momento sem o justo lamento pelas vidas interrompidas. Elena, de Petra Costa, parte desse mesmo estado de coisas, apresentando os pais neste mesmo contexto, para dizer que Elena, à época no ventre da mãe da diretora, evitou que os pais fossem sacrificados a caminho do exílio. Como um filme biográfico a ponto de carregar um nome no título, é claro que a guerrilha é colocada como dado contextualizante que, no fim das contas, serve para dar a dimensão do gesto da personagem principal: alguém que salva a vida dos próprios pais. Mas justamente por ser colocada à margem, quase como ato falho, a guerrilha é o ponto de partida de um dos dados mais interessantes deste Elena: a radiografia das transformações desta malaise em nossa História recente.
Pois Elena, a irmã da diretora, sucumbe ao mal de seu próprio tempo: no auge da juventude, vai a Nova York buscar a formação para uma vida artística mais promissora e, pouco a pouco, é devorada pela depressão. Um novo exílio, uma nova doença, um novo sacrifício; mudam as utopias, mas permanece a imposição que se morra por elas. Mas há, ainda, um terceiro passo nessa linha do tempo. Pois Elena, o filme, é também doente do espírito. Temos, aqui, uma outra encarnação dessa mesma malaise que marca os dias de hoje: a vontade de se anular em ficção. No começo, um texto em voice over lido pela diretora diz que, aos poucos, foi se percebendo cada vez mais parecida com a irmã: em dado momento, decidiu também ir para Nova York, estudar para ser atriz, exatamente como fez Elena. Quando vemos uma mulher andando pelas ruas desfocadas de Nova York, é a própria Petra Costa quem encarna a imagem espectral de sua irmã. A voz da diretora ocupa a banda sonora com uma moleza perturbadora. Seu tom, de leveza quase jocosa (leve como uma pluma, não como um pássaro – para invertermos a proposição de Ítalo Calvino), contrasta com a doença que toma o corpo da irmã a cada nova fala.
Toda a representação aqui tende ao espectral, mas a cada imagem em VHS que retorna, com a fantasmagoria acentuada dos formatos de imagem descontinuados, temos uma certeza: Elena era real, demasiado real. Deseja o cinema, mas seu palco era o teatro e a dança – as artes da carne. Seus sonhos são concretos, sua dor tem manifestação física. E, claro, sua presença pós-morte se tornou residual – mas é sintomático que, no momento em que Petra Costa foge dos desfoques e assume a área visível da cena, sua presença representada pareça tão pouco à vontade com a gestualidade de suas ações, a carnalidade inevitável que vem com a consciência cênica do próprio corpo. A malaise que, antes, interrompia o corpo com as dores do mundo e no momento seguinte manifesta no corpo as doenças do espírito, hoje nega o mundo e corpo, pois seu desejo é justamente o da perda de gravidade (os vários corpos femininos que bóiam rio abaixo), o de anular tudo que é concreto nos espectros da ficção. Do avesso de sua vontade, Elena é um dos primeiros filme a registrar essa malaise como algo mais do que uma simples manifestação.
Por outro lado, é justamente esse desejo que rende cenas preciosas como as em que a diretora interage com a mãe. Preciosas pois dotadas de uma crueldade extremamente necessária quando o desejo é usar o cinema para se comunicar com os mortos. Ao lado da diretora, a mãe refaz os últimos passos da filha mais velha, obrigada a relembrar cada detalhe daqueles últimos dias, como o laudo legista relata cada marca encontrada nos órgãos retirados do corpo sem vida. Se afirmávamos há pouco (sobre Otto, de Cao Guimarães) que um filme familiar só pode existir quando há disposição para matar a família, Elena só é possível pois há uma morte original, um corpo extremamente concreto que já não está mais lá. Pois é necessário estar em paz com a idéia de que uma morte real será tratada, pela estrutura, como um filme de suspense, e que há uma narrativa subterrânea que se impõe ao desejo agridoce da narração. Uma vez projetada, essa morte real se tornará uma morte de cinema. E por mais que o desejo de poesia se esforce por negar essa concretude, as imagens permanecem ali, aterrorizantes, como máscara mortuária do que só pode ter sido concreto. Todo documentário hoje parece desejar a ficção, mas a ficção é uma manifestação de outra ordem do documentário. A auto-ficção em Elena é a somatização da dor em sua própria negação.