Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2012.
Vida que segue
O Museu ocupa exatamente o espaço e a função em outro tempo reservados ao Templo como lugar do sacrifício. Aos fiéis no Templo — ou aos peregrinos que percorriam a terra de Templo em Templo, de santuário em santuário — correspondem hoje os turistas, que viajam sem trégua num mundo estranhado em Museu. Mas enquanto os fiéis e os peregrinos participavam, no final, de um sacrifício que, separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas relações entre o divino e o humano, os turistas celebram, sobre a sua própria pessoa, um ato sacrifical que consiste na angustiante experiência da destruição de todo possível uso. (…) Aonde quer que vão, eles encontrarão, multiplicada e elevada ao extremo, a própria impossibilidade de habitar, que haviam conhecido nas suas casas e nas suas cidades, a própria incapacidade de usar, que haviam experimentado nos supermercados, nos shopping centers e nos espetáculos televisivos. (…) E nada é mais impressionante do que o fato de milhões de homens comuns conseguirem realizar na própria carne talvez a mais desesperada experiência que a cada um seja permitido realizar: a perda irrevogável de todo uso, a absoluta impossibilidade de profanar.
“Elogio da Profanação”, Giorgio Agamben
Apesar de In Public (2001) e Prazeres Desconhecidos (2002) separá-los no tempo, O Mundo é uma espécie de continuação de Plataforma (2000), obra-prima de Jia Zhang-ke. No filme de 2000, o diretor nos convidava a acompanhar um grupo de jovens artistas sobrevivendo ao processo de abertura política do final da década de 1970, com as mudanças de gosto e rumo que o tempo tornava inevitáveis. Em O Mundo, de 2004, os protagonistas são, novamente, um grupo de jovens artistas experimentando os sabores e dessabores de seu tempo. Se, em Plataforma, eles passavam do grupo de teatro estatal para o voluntarismo das bandas de rock, agora fazem representações carnavalescas das culturas do mundo em um parque de diversões, com as luzes e o gelo seco dos desfiles de moda. Estamos, novamente, diante de um filme segmentado em esquetes, pequenas conversas e situações que expõem (pouco) o íntimo de suas personagens. Mas se o filme de 2000 era dominado pelos sonhos do além-mar que se materializavam nas calças boca-de-sino, nas fitas cassete e nos shows de rock, emocionalmente a “abertura” (“Quem é que voa nesses aviões?”, pergunta uma das meninas, enquanto uma aeronave corta o céu, deixando a cidade para trás) parece ter resultado em uma introversão maior. Os jovens agora são vítimas das doenças da insularidade característica de seu tempo: o ciúme, a traição, o desencanto e o tédio.
Por outro lado, Plataforma se voltava para um passado que, reencenado pelos olhos de alguém que mal o viveu, parecia habitar não um outro tempo, mas um outro espaço, com suas paisagens lunares, ruínas onipresentes e uma transformação monumental das sensibilidades que se dava na curta duração de um longo filme. Aqui, a paisagem traz um presente com cara de futuro, cercados por edificações novas em folha que mimetizam as ruínas também de um outro mundo. Mas, nesse futuro presente, as possibilidades de fuga se escondem somente em um outro espaço (soberbamente representado pelas animações em Flash) proporcionado pelas mensagens de texto, cujas setas de saída apontam para uma pequena e intransponível tela de um aparelho celular. O Mundo pós-abertura se fecha nos quartos, camarins e falsos planos gerais que recriam o fora como um parque temático. “Veja o mundo sem sair de Beijing”. A liberdade é apenas o triunfo da aparência.
Falamos, porém, da China. Assim como Jia Zhang-ke é um cineasta épico por imposição, aos jovens protagonistas de O Mundo – essa versão perversa de Malhação – não é permitido serem apenas jovens protagonistas. A todo tempo, as escavadeiras da História – aqui como em Fontainhas, ou em qualquer outro lugar onde a opressão chega com a força avassaladora da mais absoluta impessoalidade – os empurram contra paredes que serão logo derrubadas, abrindo espaço para prédios padronizados em feiúra que faz os simulacros de isopor do Arco do Triunfo ou da Torre de Pisa parecerem restos saudosos de uma bela época já em vias de extinção. O parque temático – esse precioso achado cenográfico, esse ambiente controlado em colorida decadência, essa promessa de um fora que leva cada vez mais para dentro, essa grande piscina de ondas – é o inferno. Mas o mundo real, do lado de fora, é pior, muito pior. Chineses, russos e outros desejosos cidadãos do mundo se trancam voluntariamente nessa jaula de variedades, buscando no aprisionamento em um simulacro uma possibilidade de resolver problemas bem mais palpáveis que precisam ficar no extracampo.
Nessa imobilidade, o canto da sereia só encontra possibilidade de fuga em outras fabricações igualmente inautênticas. A promessa de uma outra vida, de um glamour sedutor que aguarda pacientemente o momento de se mudar de vez para a França, está na fábrica de bolsas e roupas falsificadas, nas histórias de amor falsificadas, na cabine de um avião que não pode levantar vôo, nas pegadas em círculos deixadas por um par de tênis Adidas com quatro listras. Importa pouco que estejamos no suposto último bastião do velho mundo polarizado; a China de Jia Zhang-ke vive e estampa, tão bem quanto os Estados Unidos ou o Brasil, o triunfo do capitalismo avançado que Giorgio Agamben consagra como uma nova religião em “Elogio da Profanação” e que desemboca na metáfora, aqui literal, do mundo como um Museu. “Se, conforme foi sugerido, denominamos a fase extrema do capitalismo que estamos vivendo como espetáculo, na qual todas as coisas são exibidas na sua separação de si mesmas, então espetáculo e consumo são as duas faces de uma única impossibilidade de usar. O que não pode ser usado acaba, como tal, entregue ao consumo ou à exibição espetacular”.
Mais do que confrontar a aparência, O Mundo se ocupa de investigar a matéria-prima que a constitui. Se os motes publicitários que aparecem em letreiros não-diegéticos sobre a tela (“Em um dia lhe mostraremos o mundo”, mas também “Tokyo Story”, com as moças em kimonos coloridos por Ozu comem batatas chips na varanda de uma falsa casa japonesa) estão muito intimamente ligados à reconstrução pela mímese carnavalesca do parque temático, os momentos de suposta intimidade – em versão perversa de um teatro de colégio – são expostos na falsidade da fotografia hiper-recortada, colorida pela multiplicação das temperaturas de cor. A banalidade dos diálogos e a primariedade da mise en scène que os revolve – distribuindo os corpos ao redor da câmera com automatismo que faz pensar nos primeiros filmes sonoros, regidos pela necessidade que todos os atores estivessem igualmente próximos de um mesmo microfone – apontam sempre para o desejo de um filme que não pode existir, que só não tem outra opção além de se acovardar diante da monumentalidade dos travellings e das panorâmicas (movimentos que Jia Zhang-ke soube reinventar como poucos cineastas de seu tempo) que os joga contra uma paisagem de exuberância mortal, se espalhando por cada milímetro do cinemascope.
Por outro lado, em O Mundo a falsidade da aparência conquista momentos de expressividade e liberdade que permaneceriam confinados nas paredes listradas em verde de Plataforma, e que reaparecem aqui nos restaurantes e quartos de hotéis, como seguirão reaparecendo em toda a obra de Jia Zhang-ke. Nas sequências de animação, a paisagem se curva diante de uma nova expressividade do sujeito que ocupa a cidade com uma explosão do eu reprimido em toda aquela imitação de concreto. Neste ínterim, é possível libertar o espaço real: os postes da cidade se deitam sobre a câmera, imitando os mesmos postes anteriormente anunciados por uma sequência de animação. Pelo ressuscitamento da História como farsa, é possível reerguer as duas torres no skyline de Manhattan, ou fazer nevar sobre o palco de um teatro após uma das personagens dizer que “ainda não nevou este ano”. Na improbabilidade de um diálogo entre uma russa e uma chinesa, é possível que floresça uma amizade, um afeto mais forte do que a prostituição reservada aos banheiros das boates que prometem uma imagem já paródica e decadente do futuro.
Ao filme, cabe registrar esse drama adolescente que não pode acontecer, frequentemente interrompido pela História ou pela incapacidade dos sujeitos de se imporem perante ela. A História tira desses personagens qualquer direito de banalidade, de inconsequência, de mergulho no vazio que não termine em morte, sem direito a bilhete de perdão pelas dívidas que não se pode pagar ou voz em off sobre a tela preta final. Em troca, oferece a possibilidade de uma morte que se quer romântica, mas sem o direito de ser cinema. O Mundo é um filme sobre sua própria impossibilidade de ser mundano.
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