Publicado originalmente na Cinética em Maio de 2012.
A solidão do primeiro plano
De certa maneira, Na Sua Companhia é uma nova abordagem das mesmas preocupações que já formavam o núcleo de Bailão, curta anterior de Marcelo Caetano. Entre os dois filmes, há mais em comum do que simplesmente um mesmo universo – a saber, parte determinada do mundo gay masculino na cidade de São Paulo. Em Bailão, personagens solitárias encontravam refúgio comunitário nas noites em uma casa de dança. Ali, naquele espaço, elas podiam se identificar e encontrar um duplo que fosse mais do que um espelho. Mas, com uma abordagem documental se equilibrava entre a afetividade e um esquadrinhamento antropológico comportamental: Que pessoas são essas? Que lugares elas frequentam? O que elas fazem? Como elas se sentem? Como são as suas vozes? Uma vez encontrado este lugar, o que fazer com ele?
Na sua Companhia transforma o espaço de Bailão (2009) em uma metáfora mais profunda do que uma simples busca por um porto seguro. A desconexão inicial e a posterior reintegração do indivíduo na comunidade – ou mais exatamente, uma redefinição de qual seria a natureza deste espaço comunitário – aqui deixa de ser mais propriamente uma questão manifestada por o que está diante da câmera e toma posse de fato da constituição da imagem cinematográfica, comandando o gesto realizador. Uma vez filmado, o universo material espalha suas propriedades pela própria matéria sensível. Suas inquietações deixam de se manifestar no mundo filmado e passam a afetar o filme, o próprio corpo do filme.
Para que isso se realize, entramos em Na sua Companhia de maneira já clandestina, tomando a intimidade frontal de imagens de um homem feitas pelo protagonista – uma espécie de video-voyeur amador. A câmera do filme, neste momento, é exatamente a câmera do personagem: vemos o que ele vê, com a textura do seu “olhar”, seu recorte do mundo. E esse recorte é mais do que significativo: diante da câmera, o homem é apenas um torso, feito uma estátua grega que perdeu a cabeça mas, milagrosamente, manteve sua voz.
No momento seguinte, essas duas câmeras se emanciparão, ao menos por certo tempo. Por uma vista de fora – pela câmera do filme; uma outra câmera, com outra textura e outro tipo de enquadramento – acompanharemos uma fatia da vida daqueles dois homens, toda ela também atravessada por recortes, seja o das pequenas janelas que propiciam o primeiro contato físico na casa noturna – um contato ao mesmo tempo direto e mediado, parcial, recortado -, o dos alisares das portas que redimensionam os espaços, ou mesmo o da luz que escava o breu, criando pequenas áreas de visibilidade em uma cena sempre incompleta. É inevitável pensar em O Rio, de Tsai Ming-liang, mas enquanto lá o jogo de ocultamento e recorte se dava dentro do plano geral, aqui a imagem é diretamente afetada (uma câmera parcial, em todo o sentido do termo) pelo que ela filma: a relação a dois, dentro do quarto, dentro do close.
Há, porém, dois (na verdade três) olhares em jogo: o da(s) personage(ns)m e o do próprio diretor. E, por mais que eles por vezes se cruzem, e de fato se plasmem, a câmera de Marcelo Caetano – muito bem contemplada pela fotografia precisa de Andrea Capella, que faz aqui provavelmente seu melhor trabalho – se posiciona sempre de maneira a ressaltar o fora-de-quadro, a existência de um mundo que não é visto, mas que reverbera com as vozes sem rosto ou a luz vermelha que anuncia a insegurança do mundo fora da casa noturna. Essa passagem ganha ação justamente quando o homem do primeiro plano, o “objeto” do desejo, toma a câmera para si quando seu companheiro – naquele momento, alguém com quem compartilhar talvez não mais do que um breve instante de intimidade – dorme. Pois, ao contrário do voyeur, o homem observado apontará imediatamente a câmera para fora do quarto, pela janela. Milagrosamente, a câmera sai pelas ruas, ganhando as calçadas, seguindo de transeunte em transeunte, até chegar à sensibilidade daquele personagem: o plano de conjunto.
Se em Bailão era o indivíduo quem buscava o corpo social, em Na sua Companhia é o close que vai de encontro ao plano de conjunto. Aquele corpo, qualquer, congelado feito estátua em um quarto mal iluminado nos primeiros planos, ganha rosto, luz e movimento em uma roda de samba, uma dança, um casamento. Não há indivíduo potente que não seja suficientemente afetado pelo todo, assim como, sem o plano de conjunto (sem o mundo, a comunidade, o corpo social), o primeiro plano não tem “mais independência semântica que uma preposição numa frase” (André Bazin). Inserido em um cinema brasileiro – e em um Brasil – que parece cada vez mais marcado apenas pelo revés de uma vivência profundamente individualista, esse movimento de reintegração do indivíduo ao corpo social – do primeiríssimo plano com fundo desfocado tão facilmente alcançado pelas 5D para a orquestração potente de todos os elementos que habitam um plano de conjunto – de Na sua Companhia parece se alimentar da constatação de que vida e estética (a moral e o travelling) são formas contíguas de se lidar com o mundo. Mesmo que essa constatação venha pelo desejo mais individualista de se conquistar alguém – uma única pessoa já é a porta para o outro, o fora, a comunidade, o mundo.
Se em um mau filme isso resultaria em um elogio-ONG da indistinção do coletivo, o plano mais impressionante da parte final de Na sua Companhia é de brilho individual, em um magnético número de um transformista que encarna Maria Bethânia. Ao passar pelo corpo social, o sujeito potencializa sua individualidade (mesmo como duplo) e seu potencial de encantamento. O Rio (1997) se funde a Noites sem Dormir (1994), de Claire Denis: a rigidez dos recortes aprende a dançar, e os tacos soltos do chão são, ao mesmo tempo, indivíduos com lascas e características próprias, e partes de um intricado mosaico. E, por conta disso, os recortes, os grandessíssimos closes voltam a ter um sentido, um contexto, a ser algo mais significativo do que uma preposição em uma frase.