Publicado originalmente na Cinética em Fevereiro de 2012.
Pastiche de homenagem
Não é fácil lidar com frontalidade com o cinema silencioso hoje, pois em seu melhor ele é apenas um cinema “ao qual falta a palavra” (Michel Mourlet). Os filmes contemporâneos que travam uma relação mais direta com as impressões decorrentes dessa limitação evidenciam de alguma maneira esse anacronismo, indo até ele ou com intenção de se expor como pastiche (O Último Romance de Balzac, de Geraldo Sarno), ou buscando a potência de expressão dessa palavra em falta (o segundo tempo de Three Times (2005), de Hou Hsiao-hsien, não à toa, um filme sobre opressão). Muito expressivamente, são dois filmes em janelas “contemporâneas” (1.77:1 em O Último Romance de Balzac; 1.66:1 em Three Times) que trazem, no formato da própria tela, a inevitabilidade de seu momento histórico. O Artista, muito expressivamente, é um filme em 1.33:1, a janela original do cinema silencioso. Será sinal de entrega absoluta ou uma pontada farsesca de quem quer se passar por uma outra pessoa?
A princípio, O Artista pode parecer um desvio de carreira para Michel Hazanavicius, diretor até então conhecido pelos pastiches de espionagem da série OSS 117 (2006-2009). Em seus melhores momentos, o filme parece vislumbrar a possibilidade de trocar a ironia com as convenções do cinema de gênero pela tentativa de resgatar um encanto específico do cinema silencioso, em especial o realizado em Hollywood (land – na grafia original, recriada pelo filme na forma original do famoso letreiro sobre a montanha, como originalmente concebido em 1923). Mas embora esses pequeníssimos lampejos de vitalidade que o filme encontra possam fazer crer que O Artista se trata de uma homenagem de peito aberto ao cinema silencioso, há algo mais em jogo aqui, que remete à velha dicotomia entre “aparência” e “coisa em si”. Pois se não é possível, em absoluto, chamar o cinema silencioso de um “gênero”, é dessa maneira que ele é encarado por Michel Hazanavicius: um engodo, uma emulação que toma uma farsa como a “coisa em si” e lhe oferece apenas uma possibilidade de sobrevida, tentando recriar não as inclinações artísticas que norteavam os procedimentos na arte limitada a seu contexto histórico, mas sim seus efeitos, tomando-os como atalho para o gênero. O Artista é um filme kitsch.
Para todo efeito, há passagens no filme em que Hazanovicius chega próximo não dos grande gênios do cinema silencioso, mas dos bons artesãos da tradição de Hollywood. São cenas em que o diretor retoma uma preocupação necessária naquele momento e contexto (o cinema de estúdio) que hoje anda um tanto em baixa: as soluções. Pois parte do encanto do cinema de estúdio estava justamente em como diretores inventivos conseguiam criar soluções surpreendentes em uma produção que escrevia cenas como em uma linha de montagem. Dos melhores artesãos, podia se esperar ao menos três ou quatro cenas em que o filme saía do registro convencional e seus impasses de dramaturgia eram solucionados com criatividade – parte delas marcada na memória de Martin Scorsese e destacadas em sua série de documentários sobre o cinema americano. Em O Artista, esses momentos também existem: um par de pernas que é lentamente revelado por baixo de um background de céu pintado sobre madeira; uma mulher sonhadora que mete o braço no casaco pendurado de seu amor platônico e cria uma cena de amor consigo mesma; um ator decadente que é engolido pela areia movediça pouco antes dos créditos anunciarem “the end”. Mas a Hazanovicius não parece bastar mais ser um bom artesão; é preciso ser o artista, trazendo esse tipo de cenas, hoje tão maravilhosamente fora de moda, para um registro e um contexto que as trate com a esperteza e a ironia dos mais exemplares gênios contemporâneos.
Essa redução kitsch, de tomar os efeitos como “coisa em si”, é o que faz de O Artista um filme quase sempre cretino, encastelado na intransigência de quem não esboça qualquer interesse em se deslocar de seu próprio momento histórico. Na maior parte do tempo, O Artista limita-se ao regozijo de como é possível ser bonito e emocionante mesmo sendo preto e branco – e ainda por cima mudo! É, muito apropriadamente, um filme de Oscar, pois hoje não há mesmo nada mais kitsch – não somente no sentido de cafona, como se tornou corrente, mas de programático, de obscenamente panfletário que tenta transformar todo pastiche em homenagem, e toda homenagem em pastiche – do que o Oscar. Ao kitsch, falta justamente a disposição de se chegar ao coração da arte, pois seu compromisso está com a pronta utilidade da mensagem – logo, com a superfície, a aparência. A arte está para o kitsch, diria João Ricardo Moderno, assim como a poesia erótica está para a pornográfica.
A chave para essa esperteza é justamente a metalinguagem. O filme tenta transformar a limitação natural desse cinema em ferramenta que discurse sobre si própria, não exatamente como em Cantando na Chuva, em que a passagem do silencioso para o sonoro era tema de um musical, mas sim criando um filme (ou recriando, se pensarmos nas semelhanças entre O Artista e Nasce uma Estrela, de William Wellman) que traz para a sua escritura essa passagem, migrando, com o barulho de um copo colocado sobre a mesa, do silencioso para o sonoro, e usando sua própria construção técnica como “roteiro”. O não-diegético é feito diegético. Estamos, portanto, bem mais próximos de um Pleasantville – A Vida em Preto e Branco (1998), de Gary Ross, do que do estudo formal a partir da técnica de época de Juha (1999), de Aki Kaurismaki.
Uma vez que o que interessa a Hazanovicius no cinema silencioso não é seu potencial de encantamento, mas sim seus efeitos que possam ser redeglutidos como metalinguagem, O Artista se torna uma espécie de contrassenso, indo à tradição clássica para afirmar sua modernidade, reduzindo a História a um mero inventário deleuzeano de quem clama, em altos brados, que o pão fatiado é a maior invenção do século: os filmes dentro do filme de um Sherlock Júnior (1924), os cenários esquadrinhados em tableaux do primeiro Fritz Lang – momentos que surgem à força em um filme que pouco entende da mecânica de cena da Hollywood clássica, colados a planos e enquadramentos que não revelam nada que não a má qualidade do pastiche.
É aí que o filme deixa de ser um divertissement ingênuo e se torna algo um tanto mais nocivo, como se declarasse uma homenagem apenas como plano para, em nome dessa compreensão torta do amor, estuprar o homenageado. Pois se o cinema silencioso é uma cinema ao qual falta a palavra, é notável que sua entrega nessa luta perdida – a força de sua carência – se torna uma busca por dignidade. É esse o traço comum aos melhores filmes silenciosos feitos em Hollywood – uma vez que o cinema soviético, por exemplo, opera em chave bastante diversa, e muito mais próxima do kitsch. Em Aurora (1927), O Homem das Novidades (1928) ou Greed (1924), em Chaplin, Lubitsch e Griffith, muito do que é belo e comovente vem da busca por essa dignidade miúda, da qual Buster Keaton é talvez o símbolo cabal, em meio à pantomima necessária à vida cotidiana e ao próprio cinema. Em O Artista, essa dignidade é violentada por um forma de encenar que busca reduzir essa limitação a um tique careteiro, distribuído entre atores que, com exceção de John Goodman e o cachorro, não parecem ter inteligência suficiente para perceber que o cinema silencioso não visava sua própria caricatura. Ao contrário, a beleza do cinema silencioso está justamente em como ele sobrevive apesar dessa limitação natural, desse desespero em significar, e, pelo claro artificialismo de um mundo sem som, conseguir criar uma impressão de vida mais verdadeira que a vida. Não há filme que melhor capte as vibrações da plenitude do que a montanha-russa de artifícios que é Aurora. Pois ali, no seu anacronismo sub-sonoro que lhe garantiu o fracasso nas bilheterias, está estampada a necessidade de fazer brotar a potência da vida em algo que é naturalmente muito diferente dela. E, mesmo com esse bloqueio, essa defasagem, essa amputação de berço, é capaz de potencializá-la, de revelá-la como o mundo nunca nos pareceu capaz de revelar. O Artista, ao contrário de seu protagonista, que se apaixona pelos pés que dançam por trás do céu pintado, nunca consegue enxergar além de seu fundo falso.