Publicado originalmente na Cinética em Agosto de 2011.
Não são muitos os paralelos cabíveis entre Carl Theodor Dreyer, cineasta austero de inclinação metafísica, e Kurt Vonnegut, o cínico veterano de guerra. Mas ao se ver um filme como Dias de Ira no cinema, um trecho específico de um livro de Vonnegut parecia abrir uma possível seara de compreensão – ainda que inconcreta – para a aura que emana de cada personagem em tela. Em Breakfast of Champions, Kurt Vonnegut conta a história de Kilgore Trout, um fracassado escritor de romances baratos de ficção científica que, ao final da vida, passa a ser reconhecido como uma espécie de profeta. Em dado momento do romance, Trout entra em um banheiro de um cinema vagabundo em Nova York e lê, em uma de suas paredes, a seguinte inscrição: “what is the purpose of life?”. O escritor não responde à pergunta simplesmente por não ter um lápis ou caneta no bolso. Mas sua resposta seria:
“To be
the eyes
and ears
and conscience
of the Creator of the Universe,
you fool”.
Quando Dreyer filma um ator – seu rosto, sua presença física, a maneira como cada frase é proferida, o tempo em que um rosto sai da escuridão para os expressivos fachos de luz da fotografia de Karl Andersson – ele não é apenas um ator, mas “os olhos, os ouvidos e a consciência do Criador do Universo”. Esse efeito é menos um relato de arbitrariedade esotérica, e mais uma percepção de como cada personagem de Dreyer parece apenas dar corpo e voz a valores que o transbordam. Com a devida dimensão de uma tela de cinema, é nítido o quanto essas presenças são construídas de maneira a representar muito mais do que apenas uma afirmação física, mas a encarnação de algo tão fundamental quanto o conceito de divindidade. A arte como clareira metafísica não se configura necessariamente por uma ótica beata, mas sem dúvida como uma propensão religiosa comum a vários dos maiores cineastas, seja pela impenetrabilidade das máscaras de Robert Bresson, a transmutabilidade incessante dos espíritos em Apichatpong Weerasethakul, a dignidade inalienável dos heróis e bandidos de John Ford, ou a resignação harmônica do tao em Yasujiro Ozu. Em todos os casos, a matéria é moldada pelos diretores, que rasgam em sua superfície pequenas fissuras que deixam transparecer, lá no fundo, a presença de Deus. E do Diabo.
Em uma cena de Dias de Ira, pouco depois de Martin (Preben Ledorff Rye, o mesmo ator que faz o messias em Ordet) e sua madrasta Anne (Lisbeth Movin) se confirmarem como um trágico par romântico, o casal olha para uma árvore que se dobra sobre um riacho. Ele diz se tratar de uma árvore envergada pelo luto por toda a humanidade; ela vê apenas uma árvore que entortou por se sentir atraída pela beleza de seu próprio reflexo. Em Dias de Ira, todo plano carrega essa potência igualmente divina e diabólica, capaz de ir do céu ao inferno com uma simples mudança de luz, ou mesmo de manter sua ambiguidade à mercê do olhar de cada espectador. Toda mulher pode ser santa ou bruxa; todo homem pode ser um herói ou um algoz. Não à toa, o filme foge da estrutura diametral de plano/contraplano, substituindo-a em grande medida pelo plano-sequência, ou por planos/contraplanos descentralizados, descompensados em sua relação, desmontando a segurança moral do eixo dos olhares.
A preservação dessa ambiguidade é essencial para o cinema de Dreyer, pois ela o situa como um diretor frontalmente político. Assim como o milagre ao fim de Ordet (1955) nos chama à responsabilidade, em Dias de Ira somos jogados em uma bestial inquisição para, em pouco tempo, vermos concretizados os motivos que transformam as mulheres em bruxas. A maneira como cada personagem assume prontamente suas responsabilidades faz uma inversão essencial: depois de condenarmos intimamente a barbárie e nos compadecermos pelo passado opressor sofrido pela protagonista, seremos capazes de chamá-la de bruxa? Ela é apenas uma mulher em busca de amor, ou também uma assassina confessa? Mesmo que, à razão dos nossos olhos, o assassinato nos pareça no mínimo fantástico, senão absurdo, a índole de quem acredita ter provocado conscientemente um assassinato é diversa da de quem crava a faca? Imaginar “e se…” é diferente de desejar?
As personagens de Dreyer olham diretamente para a câmera e para o espectador, pedindo uma tomada de posição à medida em que, reconhecidamente, elas também nos julgam: quem você acha que eu sou? O cinema de Dreyer, porém, não se ergue nesses questionamentos. Não há nada de duvidoso em seus filmes: todos se amam e se matam preenchidos integralmente pela certeza de suas convicções. Mas ele faz com que essas perguntas escorreguem pelas bordas, aparecendo pelos rasgos da máscara como os olhos de Deus. É nesse sentido que sua relação com o clássico se mostra essencial para o cinema moderno. Dreyer retoma, é verdade, uma série de convenções da pictorialidade renascentista: a composição dos planos; o posicionamento jansenista de cada cabeça no enquadramento; a austeridade de uma construção em sussurros e olhares para o além; o temor que se esconde por trás do brilho de cada retina. Mas onde na pintura há fixidez e certeza, no cinema há a possibilidade de mobilidade, de se abrir a cena como se desdobra um tabuleiro.
Nesse sentido, Dias de Ira é uma mudança decisiva em relação à fase silenciosa do diretor, em que a atração dos ícones religiosos provocava um choque entre planos sempre centrípedos, de cujo confinamento não se podia fugir. Em Dias de Ira – como em Ordet e Gertrud (1964) – Dreyer parte da composição renascentista perfeita para travellings ou panorâmicas que redefinem o entorno do ícone, fazendo campo do extracampo da cena, e maleabilizando o seu significado. Um sujeito que olha para o nada logo se transformará na testemunha de uma cena de tortura, assim como os gritos fora de quadro serão surpreendidos pela chegada atrasada da câmera, quando a tortura já terminou e a torturada já aparece solta. A isso, Dreyer soma o cuidado de compor o quadro não só para o começo e o final de cada movimento, mas também para todos os estágios intermediários, como se cada instante qualquer pudesse ser, também, escolhido como instante pregnante. O que poderíamos dizer sobre uma cena de tortura se, em vez de recortar o torturador ou o torturado, um artista tomasse como índice mais expressivo o espaço vazio que os separa?
A visão por entre os rasgos é sempre parcial e marcada pelos desejos de quem olha. Anne borda uma tela tendo como referência um desenho de uma mãe de mãos dadas com uma criança. Pela tela, ela vê Martin, seu novo “filho” e futuro amante, e pára o bordado no meio, ignorando o molde que lhe foi pré-definido, interrompendo o espelhamento em ato de inegável autonomia: sem bordar a criança, aquela personagem não é mais uma mãe, mas uma mulher independente e solteira, liberta do entorno que a definia como mãe. De certa forma, o que faz do cinema de Dreyer algo ainda hoje tão impressionante é a maneira como ele transforma tudo que filma em esfinge, conferindo uma autonomia irrestrita e surpreendente a tudo que põe diante da câmera, filmando tanto um torturador quanto um torturado com a mesma carga enigmática que envolve o espaço que os separa. E sim, é claro que Anne é uma santa, mas não vês que ela é também uma bruxa? Dreyer faz, com isso, um cinema que é igualmente íntegro e perverso, capaz de transformar um duplo adultério em uma das mais belas cenas de amor do cinema, pelas frestas de dignidade de um arbusto. Assim como os rasgos que dão acesso aos olhos, aos ouvidos e à consciência do Criador do Universo – seja ele Deus ou o diabo – por entre os galhos vemos uma bruxa se deitar com o próprio enteado… e vemos um casal em momento puro de felicidade e amor.
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