Publicado originalmente na Cinética em Junho de 2011.
O nascimento do caos
Gilles Deleuze partia de Lacan para dizer que o estilo não seria mais que a diferença subordinada ao idêntico. Poucos cineastas ilustram tão bem esse conceito como Johnnie To, sujeito que foi, sem cerimônia, das comédias aos filmes de ação, de romances fantasmas a tiroteios que transformam as ruas de Hong Kong em palco (ou picadeiro) de western. Embora Eleição não seja o melhor dos filmes recentes de Johnnie To (a despeito de estar facilmente entre os melhores de sua carreira), ele talvez seja um dos guias mais precisos para se compreender o trabalho de maturidade do diretor, e os rumos de seu olhar.
Ativo no cinema de Hong Kong desde 1979, incluindo uma pausa de sete anos após seu primeiro longa metragem, e progressivamente responsável por um cruzamento bastante peculiar entre o cinema industrial – realizando uma média de dois filmes por ano, cruzando uma série de estilos, e com uma variação sensível de qualidade – e o reconhecimento artístico, Johnnie To tem como traço de sua fase mais recente a dedicação frontal e quase exclusiva (à exceção de equívocos como Linger, de 2007) à potencialização barroca do estilo. Seja pelo universo dos mafiosos de Hong Kong, como em Eleição; os bastidores do telejornalismo, como em Breaking News (2004); ou o (parco) funcionamento da instituição policial, em PTU (2003) e Mad Detective (2007), Johnny To cada vez mais transforma seus trabalhos de gênero em esforços rigorosos (e muitas vezes descerebrados) de exacerbação estilística.
Para quem chega a Eleição já familiar à coreografia exagerada dos filmes posteriores, talvez este lhe pareça surpreendentemente contido em seu ritmo até certo ponto tradicional, seus contrastes intensos, sua trama em carrosel e seu peso político. Mas Eleição é um filme essencial justamente por testemunhar o começo do desbunde: como é viver em um mundo onde não há mais regras? É exatamente aí que são colocadas as personagens da trilogia de Eleição (completada por Eleição 2 e Exilados), entre os escombros da tradição e da ética.
Eleição filma esse progressivo desmantelamento e, à medida em que ele avança, os punhos da atmosfera se cerram com maior força em nosso pescoço: quando não há mais regras, tudo é possível. Todo carro que se move é uma ameaça, toda sombra (e há toneladas delas) pode esconder um confronto com a morte, todo encontro pode ser preparação para um banho de sangue. Neste ponto, Johnnie To realiza um espelhamento bastante surpreendente. Pois, assim como o submundo do crime, o cinema de gênero – lugar mais que propício para que a diferença seja subordinada ao idêntico- também tem suas regras. Mas se as regras já não servem para nada dentro do filme, é preciso que elas sejam também abolidas pelo filme. O que aflora em Eleição (embora já estivesse presente em momentos de filmes anteriores do diretor) é justamente essa encenação do apocalipse ético, em que tudo é permitido desde que seu efeito – como no faroeste spaghetti – seja absolutamente espetacular. Essa transformação pode ir do exagero farsesco da sequência da casa de espelhos em Mad Detective, ao sangue em pó que brota a cada tiro em Exilados (2006): não há mais compromisso possível a não ser com a orquestração desse caos auto-gerido e auto-gerado.
Eleição começa justamente com essa ruptura. Big D (Tony Leung Ka fai) e Lok (Simon Yan) disputam a eleição para a presidência da Tríade, organização mafiosa que domina grande parte do crime de Hong Kong. Assim que Big D desrespeita as regras do jogo político, a Tríade se despedaça, e o filme se transforma em um duelo em loop pelas ferramentas do poder. Não é à toa que Big D, o subversivo, seja o único a negar o capuz oferecido pelos policiais quando é preso. Ele pára do lado de fora da prisão e pede que as pessoas tirem sua foto, eternizem seu rosto congelado naquele momento. Big D é justamente o sujeito a fazer a passagem da tradição – do universo “documental” que funciona de acordo com, e pela manutenção de, certas regras de convívio – para o barroco, a performance pura que se exibe como tal, trocando a ética pelo carisma. É por isso, inclusive, que as sequências de ação se tornam cada vez mais rebuscadas no avançar da trilogia, chegando à apoteótica carnificina que é Exilados. Não importa que Big D seja morto, pois até a necessidade de sua morte é um reconhecimento de o quão fatal é sua ruptura, de o quão perturbadora e irreversível é a sua presença.
Eleição não é, portanto, tão pirotécnico quanto os filmes seguintes, pois aqui a ética ainda se arrasta como um cadáver insepulcro, cadenciada no andar paquidérmico dos veteranos, conservada nos restos de respeito que os mais jovens ainda carregam pela tradição. O filme, porém, é cuidadosamente arquitetado para espremer cada uma dessas últimas gotas, tornando-se cada vez mais sufocante e rarefeito, armando um cerco que se fecha ao redor do espectador à medida em que o confronto se torna mais e mais inevitável. Uma vez cooptados pela precisão da mise en scène de Johnnie To, estamos todos em suas mãos. E quando o único compromisso possível é com a experiência física do espetáculo (do amor ou do horror, pouco importa – nada mais importa), seus delírios e perversões são de uma energia e vibração que encontra raríssimos paralelos no cinema contemporâneo.