Originally published at Cinética in December 2010.
Fixating process
At the time Ne Change Rien premiered at Cannes, Eduardo Valente wrote at Cinética that the film was about two essential components of cinema: light and sound. More than a disagreement, I would suggest taking a step back: Ne Change Rien is definitely a film made of/for/on light and, as a music documentary, sound plays an inevitably primordial part; but in this case, sound is the material evidence of another constitutive element: movement. Because sound materializes the duration in which movement (by the characters as well as the songs) is inscribed. The film seems less invested in documenting the way a song takes shape (Costa’s films do not appear to be any more concerned with documenting than the medium already inevitably is) or registering the creative process itself. Instead, the film chooses a medium (sound) and a timeframe (a song) that will allow a plastic movement to take place beyond the camera.
From this combination of light+movement, the film speculates on a central visual question: the constant modulation of a view within a certain frame created with light. Ne Change Rien enacts the old cinematic dream of putting sculptures in motion, using cinema to solidify monumental living figures (in this case, Jeanne Balibar; in Colossal Youth, Ventura) but, different from the portraits that open Casa de Lava – freezing faces within the span of a shot, applying a pictorial referential to cinema – Ne Change Rien seizes the possibility of sculpting movement, solidifying, without betraying, what is fluid and in constant transformation. It is cinema, then, that breaks into the realms of painting and sculpture, because Costa appropriates a certain visual referent (Jeanne Balibar’s face is treated like a Caravaggio composition or a Rodin piece), but reverses Marey’s frame-by-frame decomposition into a sense of motion that can only be registered in its own domain. Costa does not film a pictorial fixation, nor the process of its composition: he films living models in motion as if they were sculptures or paintings, as if cinema could surprise the visible nature of these neighboring arts, inviting them to transgress their own specificity.
Music – a resource that was only punctually used in Pedro Costa’s previous films, but that conceptually tied all of them together – is the key that suggests this possibility: by focusing on a theme that is itself a practice of modulation, the director creates a rich and novel way to visually express it. The high contrast between black and white feeds off a history of forms in the visual arts, but it aims at something that is more specific to cinema in relation to painting: the possibility of movement within this same light, radically altering the meaning of a composition with every little body movement. Light and dark are equivalent to the changes between majors and minors in the songs, between shot and reverse shot, between tenderness and terror, refinement and brutality. Jeanne Balibar’s singing becomes a privileged matter because, when she sings, she moves. And, with each little movement, her peculiar face changes with the chiaroscuro, her face is reconfigured, and her appearance is re-rendered unpredictable – a nymph in one moment, and a monster in the next. All these modulations coexist in the duration of the shots and pour out of the dance between light and shadow, and the determination of the tableaux.
Pedro Costa’s interest in making films about creative processes seems to be less driven by an investigative curiosity than by performative pragmatism: the focus on rehearsals in Ne Change Rien is fertile in erratic fluidity, accenting the contrast between the immutability of an audiovisual recording with the constant becoming of music. As in Where Does Your Hidden Smile Lie?, it is less a matter of deciphering the creative process than of promoting a clash between two moments of a work of art – the finished work (Pedro Costa’s films as we see them) and the progress of its definition. When we watch Danièlle Huillet halting a shot at the editing table, the viewer is not asked to partake on her genius instinct that searches for just the right moment (the hidden smile that make great artists great, and that protect their process from any kind of butchering); instead, we experience the dissonance between something that is mobile and unstable, a play between decomposition (the buildings in In Vanda’s Room; or the bodies in Ossos) and composition (the editing of Sicilia! or Jeanne Balibar’s rehearsals) within something that is already present as whole and unchangeable – a contrast expressed not only in the film, but at also in its title: change nothing.
In Ne Change Rien, the director looks for opportunities that allow this fluidity of moods to come to the surface. If we get to watch a very long take of Balibar taking singing lessons (perhaps the most beautiful shot in the whole film), it is because the interruptions by her instructor disturb the flow of duration and provoke change – in her voice, her face, her singing – that becomes visual and aural compositions. The difficulty in keeping the tempo of a song is therefore included in the film not to validate process nor corroborate competence but as a dramatic dispositif that can abruptly take the scene from climax to rupture, from sweetness to irritation. Pedro Costa’s cinema flows between opposing tentpoles (inside and outside, visual richness and material poverty, theatricality and the real, etc.) and here this flux finds one more manifestation: the confrontation between the duration of the shot and the violence of the cut. The cut, however, is often profilmic and is promoted by each sudden change in mood or direction that the long takes wholly capture. Pedro Costa engages not exactly with the intimacy between camera and character, but with this process of attraction and repulsion between offering and withdrawing. Ne Change Rien is a beautiful collection of exchanges, interrupted.
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Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2010.
A fixação em processo
À época da exibição de Ne Change Rien em Cannes, Eduardo Valente escreveu aqui na Cinética que o filme seria sobre duas coisas essenciais ao cinema: a luz e o som. Faço aqui uma ressalva que não é exatamente uma discordância, mas talvez um passo atrás: Ne Change Rien é, sem dúvidas, um filme feito sobre/para/por a luz, e, em se tratando de um documentário de música, é inevitável que o som seja algo primordial ao filme; mas o som é aqui um desdobramento de um valor anterior e constitutivo que me parece, neste caso, ainda mais essencial: o movimento. Pois o som é a materialização da duração na qual são inscritos os movimentos dos personagens e das próprias canções. A intenção é menos a de um registro de uma canção que se forma (o que torna, em si, inapropriada qualquer aproximação com o documentário: os filmes de Costa não se interessam em registrar ou documentar coisa alguma mais do que qualquer outra arte já inevitavelmente registra e documenta), ou de um processo criativo, e mais de delimitar um meio (o som) e um tempo (a canção) para que um movimento plástico possa acontecer para a câmera.
A partir dessa combinação luz+movimento, surge o que o filme tem como questão visual: a constante modulação de uma mesma vista dentro de um recorte de luz. Ne Change Rien realiza um velho sonho cinematográfico de colocar esculturas em movimento, de usar o cinema para solidificar determinadas figuras monumentais (aqui, Jeanne Balibar; em Juventude em Marcha, Ventura) mas, ao contrário dos retratos que abrem Casa de Lava – e que congelam os rostos dentro do tempo do plano, aplicando um referencial pictórico ao cinema – Ne Change Rien percebe a possibilidade de esculpir esse movimento, de solidificar o que é fluido e está em constante transformação sem exterminar, com isso, com a fluidez e a transformação. É o cinema que invade a pintura e a escultura, pois Costa se apropria de um certo referencial imagético (o rosto de Jeanne Balibar é tratado igualmente como uma composição de Caravaggio ou uma peça de Rodin), mas reverte a decomposição quadro-a-quadro de Marey no contínuo do vídeo, por um movimento que só pode ser registrado em si. Costa não filma a fixidez pictórica, nem seu processo de composição: filma modelos vivos e em movimento como se eles fossem esculturas ou pinturas, como se o cinema pudesse entrar na essência inevitável dessas artes e surpreendê-las, conferindo-as capacidades que estão fora de seu alcance.
A música – algo que até então era pontual como presença na obra de Pedro Costa, mas que amarrava como idéia todos os seus filmes – é a chave que sugere essa possibilidade: a modulação é particularidade do tema do filme (a música), e ela leva o diretor a criar um equivalente visual rico e novo para expressá-lo. O contraste extremo do preto e branco feito por Pedro Costa parte de uma referência essencialmente plástica (como todos os seus filmes, inclusive), para chegar ao que o cinema tem de específico em relação à pintura: a possibilidade de se mover dentro dessa mesma luz, e de transformar radicalmente o sentido com cada pequeno desvio. A relação de claro-escuro é também a mudança dos tons maiores pros menores das canções, do plano pro contraplano, da doçura pro terror, do refinamento para a brutalidade. O canto de Jeanne Balibar interessa pois quando ela canta, ela se move. E a cada movimento seu particularíssimo rosto se redefine no claro-escuro, seus traços são reconfigurados, sua aparição se refaz imprevisível. Em um momento vemos uma ninfa, mas no segundo seguinte ela já se transformou em monstro. Tudo isso convive na duração dos planos e surge em uma simples relação de luz e sombra e na determinação que mantém os planos quase sempre fixos.
A intenção em filmar um processo é menos de uma investigação do que de um pragmatismo de performance: se há, em Ne Change Rien, a vontade de contrastar o imutável do cinema com o vir-a-ser constante da música, nos ensaios essa performance é ainda mais errática, e sua fluidez mais extrema – algo ainda mais claro nos planos em que a banda ensaia frente uma tela branca, que faz lembrar a tela do próprio cinema. Assim como em Onde Jaz o seu Sorriso?, a vontade é menos de investigar o processo criativo e mais de provocar um choque entre esses dois momentos da obra de arte – uma obra acabada (os filmes de Pedro Costa como os vemos) com outras ainda em processo de definição. Quando vemos Danièlle Huillet travando um plano na moviola, nunca teremos o lampejo de buscar as mesmas coisas que ela busca naqueles fotogramas (o tal sorriso escondido que faz os grandes artistas serem especiais, e seus processos resistirem a todo tipo de desconstrução ou esquartejamento); o que teremos é a dissonância de algo móvel, em decomposição (as construções de No Quarto da Vanda; os corpos em Ossos) ou em composição (a montagem de Sicília! ou os ensaios de Jeanne Balibar) dentro de algo já fixo e imutável, expresso não só pelo filme, mas também por seu próprio título – ruído que é essencial a toda a obra de Pedro Costa.
Em Ne Change Rien, o que o diretor faz é aproveitar situações que permitam que essa fluidez de humores aflore. Se vemos um plano longuíssimo – e talvez o mais belo de todo filme – de Balibar fazendo uma aula de canto lírico, é justamente por as interrupções da instrutora perturbarem essa duração e provocarem mudanças – de voz, de rosto, de canto – que poderão ser apreendidas visual e sonoramente. A dificuldade em acertar o tempo de uma música não surge como atestado de processo ou de competência, mas sim como o dispositivo que leva a cena do mais climático à ruptura mais abrupta, da doçura à irritação. O cinema de Pedro Costa é todo feito de binômios antagônicos (o dentro e o fora, a riqueza visual extraída de uma realidade paupérrima, a teatralização do real, etc), e aqui temos um dos mais constantes: o confronto entre a duração do plano e a violência dos cortes. Em Ne Change Rien, o corte não provem do cinema: ele é interno à cena, promovido por cada mudança brusca de humor e direcionamento, e os planos longos vão captá-los em toda sua integridade. A Pedro Costa interessa filmar não exatamente a intimidade entre câmera e personagem (embora ela exista), mas sim esse processo de atração e repulsa entre quem se oferece ao outro para no momento seguinte – por força de vontade ou contingência – novamente se retrair. Ne Change Rien é uma belíssima sucessão de coitos interrompidos.