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My Soul to Take (2010), Wes Craven

Publicado originalmente na Cinética em Dezembro de 2010.

De volta à ficção

Na primeira parte de A Sétima Alma, um caso extremo de dupla personalidade termina com um homem tentando (e parcialmente conseguindo) matar sua própria família. A sequência é montada em cortes asfixiantes e encenada com um acento naturalista à John Carpenter que é um tanto estranho à obra de Wes Craven – cineasta essencialmente alegórico. O homem é perseguido pela polícia e a ação termina com um acidente de carro que poderia ou não tê-lo matado. Uma das policiais diz que em sua terra natal não se diz que alguém tem “dupla personalidade”, mas sim “duas almas”. Ao contrário da personalidade, a alma não morre junto com o corpo e pode reencarnar em outro corpo no futuro. Uma cartela anuncia “16 anos depois”, e nos joga em terreno que lhe é mais familiar: o palco alegórico das high schools, onde estar no mundo é também questão de encenação; onde há sempre os atletas; os geeks; a garota bonita e manipuladora que controla toda aquela cena; a jovem estranha de formação extremamente religiosa; o garoto negro, cego e de bom coração, etc.

É importante não subestimar o corte temporal como uma simples relação de causa e efeito (algo que ele também é), pois ele será essencial para toda a construção de sentido de A Sétima Alma: o mito é estabelecido por meio de uma experiência real e concreta – mesmo quando aparentemente sobrenatural. Os jovens da escola vão ao local onde o assassino teria desaparecido para celebrar o aniversário do mito. Ano a ano, todos os que haviam nascido naquele fatídico dia precisam enfrentar uma encenação do reaparecimento do assassino e enfrentá-lo, derrotando um boneco que o representa. No décimo sexto aniversário – de morte e de vida – é a vez de Adam “Bug” (Max Thieriot) encarar a reencarnação do trauma do nascimento (no caso dele, mais tarde saberemos, literal: ele é o filho do assassino) naquele boneco. Mas ele – garoto que tem dois nomes, um de batismo e outro de seu personagem social – fica congelado de pavor e não consegue reagir. Bug, ao contrário de todos os outros jovens, é aquele que acredita. A polícia chega e interrompe o ritual. Bug vê que se tratava de um boneco, mas ali, dentro daquela encenação, ele parecia tão real… e essa crença de quem vê as engrenagens de um boneco, mas ainda assim não consegue conceber que sua vida não seja real e incontestável, é o suficiente para fazer que o sangue jorre e os jovens daquela cidade sejam dizimados, um a um. O estripador – na porção naturalista do filme, um sujeito normal – volta com a máscara e as roupas que a encenação anual lhe consagrou. A morte tem o rosto que o mito lhe dá.

A Sétima Alma é um filme sobre a ficcionalização, mas sobretudo sobre a crença no resultado da ficção, da encenação em si. Os crimes traumatizam o microcosmo da high school em um choque que estabelece uma paridade: viver em civilização é aprender a incorporar uma certa encenação, a assumir um papel a se desempenhar e acreditar plenamente nele – e a high school é o rito de passagem por excelência entre um estado selvagem e outro civilizado, cultivado, na sociedade norte-americana. Como O Sangue (1989), de Pedro Costa, e Paisagem na Neblina (1988), de Theo Angelopoulos, A Sétima Alma se dedica a personagens que estão aprendendo essa encenação traumática do cotidiano, essa maneira de transformar algo que é essencialmente selvagem e violento (a infância, tomada aqui – mesmo que só superficialmente, em um dos vários truques de fumaça do filme – como sinônimo literal de pureza, mesmo que decorrente da barbárie) em um comportamento regrado e harmonioso ao corpo social. Os traumas são convertidos em mitos, que são posteriormente transformados em ritos, de forma a purgar a violência em uma cena segura e edificante: mate o assassino; ele é apenas um boneco
.
Essa falácia social funcionaria bem, não fosse a figura que carrega em seu nome inventado sua vocação de curto-circuito: Bug é a própria ficção, a narrativa incorporada. É ele quem muda de voz dentro de uma mesma cena, em um transtorno multipolar de quem se conta na polifonia dos vários personagens de uma encenação; é ele quem reúne os elementos (o celular, a faca) que conferem ordem à narrativa. É ele quem olha para o espelho e, como se ele fosse uma tela de cinema, consegue se comunicar com os mortos. É ele que levanta a voz em uma encenação em sala de aula, e diz à professora que é tudo para melhorar a performance. Ele é a narrativa (a ficcionalização) que, como todo mito, nasce do próprio trauma, da barriga da mulher assassinada pelo marido; é “a luz na escuridão”, a promessa de vida que confere algum sentido a toda aquela barbárie. E a crença – a materialização física e corporal em uma pessoa – na ficção é tudo que ela precisa para se tornar verdade, para entrar em choque com a encenação do cotidiano e revelar as fissuras em sua base – como as cercas brancas se firmam em um chão cheio de vermes em Veludo Azul (1986), de David Lynch. Não à toa, toda a farsa de A Sétima Alma termina com uma grua absolutamente definitiva, saindo da casa (não uma casa qualquer, mas a própria idéia de lar) onde as chacinas se repetem para os símbolos das instituições que sustentam aquela sociedade e seu mito fundador: uma ambulância, uma viatura policial e um caminhão do corpo de bombeiros.

Em época em que o cinema se acomoda em novos paradigmas de permissividade e flutuação, Wes Craven o reafirma como ferramenta de produção de sentido, de intervenção direta na sociedade na qual a arte está fundada. Não é por o cinema ter passado a ignorar essa patologia de fundação que ela deixou de existir, e A Sétima Alma vem também como esse bug, esse vírus que precisa ser disseminado para que uma certa perspectiva (diria até uma certa lucidez) seja retomada em um cinema que se tornou por demais vaporoso, por demais flutuante em seus próprios afetos. Não deixa de ser curioso que um sujeito outrora essencial para o estabelecimentos desses mesmos novos paradigmas na década de 80 – que implodia os limites (e as consequências) entre ficção e realidade na personagem genial de Fred Krueger – venha, sistematicamente, reafirmando essa vocação do cinema como criador de imaginário e de cultura de forma mais acentuada ao menos desde Pânico 3 (2000), culminando na mais eloqüente resposta ao 11 de Setembro dada pelo cinema americano que é Vôo Noturno (2005).

Craven – artista que, nos altos e baixos, sempre manteve a pulsação dos EUA na ponta dos dedos – reafirma obstinadamente essa responsabilidade em A Sétima Alma, fazendo aqui uma oportuna reafirmação de princípios, atestando a necessidade de se recolocar o cinema em seus trilhos. É de fato irônico que, também desde Pânico 3, seus filmes venham perdendo ressonância, gritando afirmações que seguem incompreendidas e colecionando recordes de suposta inexpressividade (A Sétima Alma – convertido em 3D para o lançamento americano – foi a pior estréia da história no formato). Mas, em A Sétima Alma, Craven reconhece tanto esse desprestígio quanto a sua irrelevância: para que a ficção se complete, basta que uma pessoa acredite. Basta que alguém olhe para os bonecos, veja que são bonecos, e ainda assim não tenha dúvidas de que eles estão vivos, demasiado vivos.

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