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The Residents (Os Residentes, 2010), Tiago Mata Machado

VERSÃO EM PORTUGUÊS

Originally published at Cinética in November 2010. Translated and republished in the Berlinale 2011 catalog.

To inhabit and to be inhabited

In a certain moment of The Residents, a feature film by Tiago Mata Machado, the guerrilla artists’ group who stars in the film makes a weapons training without weapons, dodging imaginary enemies they fight with invisible grenades. The scene is emblematic for its clarity, finding a harmony between acting and not-acting, creating a subject who, to quote Jacques Rancière on Oedipus the King in The Aesthetic Unconscious, “knows and does not know, who is absolutely active and absolutely passive. Such an identity of contraries is precisely how the aesthetic revolu­tion defines what is proper to art.” The scene where one of the group members writes, in capital letters, its ambitions in cabinet doors is, therefore, unnecessary: The Residents is a product of aesthetics.

Fittingly, the film is formed by the accumulation of sketches that, even with a wandering relationship with the narrative as a whole, are depleted in their own existence. We can move from Leos Carax’s excess-as-an-artistic-strategy to conversations that relate directly to the economy of Andy Warhol’s films; the vignettes combine elements of pop art with the deformation of op art; poses are dismantled in self-irony, with a question asked by Melissa Dullius to Gustavo Jahn (artists and spouses in real life) in an absolutely admirable dialogue scene: “You think I’m just a show?.”

This acute awareness of its own limitations is what makes The Residents an impressive but also an annoying film: every claim is subsequently denied; any position taken is scoffed at the next scene; all knowledge is contrasted to its refusal; every action is confronted by its own suffering. Thus, the film is an aesthetic product par excellence, floating in its own latency, consistent with an artistic regime founded on the inconsistency of its own existence, on the absence of end that is its very purpose. It is a film that moves toward the future with eyes that fetishize the guerrillas of the past, but that, at the same time, know that fetishizing struggle completely neutralizes it. Like Oedipus, the characters transform life and thought into illness, and their powerlessness into power. The artists climb walls, occupy spaces, cover the hard geometry of a roof with dirt, promote very contemporary-art-like inversions between the inside and the outside (a dilemma mainly embodied by the character played by Dellani Lima)… but in the end, the house goes down, and the artists resume their Sisyphus’s task, pushing invisible stones up the hill. The Residents is a long prologue for a film that never gets started.

But if film is an accumulation of images, we must meet them in their own terms. This is where the relationship with the film gets complicated, because in all the words left unsaid, in all its coherent inconsistency and its sophisticated naivete, the shots of the film get engraved in our memory and are disruptive in their plasticity (largely based on an exceptional work of photography by Aloysio Raulino), instigating in the strength they lend to everything the film claims to be volatile. This is where the film’s biggest achievement takes place: while it asserts itself as openly ideological, even propagandistic, the strength of the images transcends ideology. Faced with fragments of extraordinary power, the ideological thread that sews them becomes secondary, if not irrelevant. Its dodging way of dealing with its own statements is contrasted with the eloquence of its visual construction – even if the care notably put into it is ridiculed in the following moment. Despite the gap the distances this critic from this film, The Residents shatters when it meets the eye. Much like the group of artists squat the dilapidated houses that appear throughout, the film itself finds unexpected ways to settle in the imagination of the audience, only to continue resonating after the end of the projection. And that feeling is something that Brazilian cinema – even at its best – has not provided in a fairly long time.


* * *


Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.

Habitar e ser habitado

Em certo momento de Os Residentes, o grupo de artistas-guerrilheiros que protagoniza o filme faz um treinamento com armas que não existem, esquivando-se de um inimigo imaginário que ele combate com granadas invisíveis. A cena é emblemática pela clareza do ato que se anula na convivência com seu próprio não-ato e que, citando Jacques Rancière a respeito de Édipo Rei em O Inconsciente Estético, “é aquele que sabe e não sabe, que age absolutamente e que padece absolutamente. Ora, é precisamente através dessa identidade de contrários que a revolução estética define o próprio da arte”. É desnecessária, portanto, a cena em que um dos integrantes do grupo picha, em letras garrafais, suas ambições em portas de armário: Os Residentes é um produto da estética.

Muito apropriadamente, o filme se configura no acúmulo de esquetes que, mesmo tendo uma relação vagueante com o todo narrativo, se esgotam em sua própria existência individual. Podemos sair do excesso como estratégia artística de um Leos Carax para conversas que remetem diretamente à economia dos filmes de Andy Warhol; as vinhetas combinam elementos de pop art com deformações da op art; toda uma estratégia de pose é desmontada na auto-ironia de uma pergunta que Melissa Dullius faz a Gustavo Jahn (não à toa, artistas e cônjuges na vida real), em uma cena de diálogo absolutamente admirável: “tu acha que eu sou uma encenação?”;

Essa consciência aguda de seus próprios limites é o que configura Os Residentes como um filme impressionante mas também um tanto irritante em sua coerência: toda afirmação é posteriormente negada, toda postura tomada é debochada na cena seguinte, todo saber é contrastado ao seu não-saber, toda ação é confrontada ao seu próprio padecimento. Os Residentes é, portanto, um produto estético por excelência, flutuante em sua própria latência, coerente a um regime artístico fundado na incoerência de sua própria existência, na ausência de fim que é sua finalidade. É um filme que se joga no futuro com olhos que fetichizam as guerrilhas do passado, mas que, ao mesmo tempo, sabe que fetichizar a luta é a maneira de exterminá-la por completo. Como Édipo, as personagens de Os Residentes fazem da vida e do pensamento uma enfermidade, e de sua impotência uma potência. Os artistas sobem paredes, ocupam espaços, cobrem de terra a geometria dura de um telhado, promovem inversões muito contemporâneas do dentro e do fora (dilema principalmente encarnado na personagem de Dellani Lima)… mas, no fim das contas, a casa vai ao chão, e o artista retoma sua tarefa de Sísifo, empurrando morro acima suas pedras invisíveis. Os Residentes é um longo prólogo de um filme que nunca chega a começar. 

Mas se Os Residentes é um acúmulo de imagens, é preciso ir ao encontro delas. É aí que a relação com o filme se complica, pois em todos os seus ditos não-ditos, em toda sua coerentíssima incoerência, em toda sua sofisticada ingenuidade, os planos do filme se instalam na memória, perturbam por sua plasticidade (muito fundada em um trabalho excepcional de fotografia de Aloysio Raulino), instigam pela solidez conferida a tudo que o filme afirma volátil. É aí que o golpe maior se realiza: ao mesmo tempo em que ele se afirma absolutamente ideológico, panfletário até, a força de suas imagens transcende a ideologia. Diante de fragmentos de extraordinária potência, a ideologia que os costura se torna praticamente irrelevante. Sua maneira esquiva de lidar com suas próprias afirmações é contrastada à eloquência de seus planos, à tessitura cuidadosa de cada sequência – mesmo que ela seja ridicularizada no momento seguinte. A despeito das diferenças entre crítico e filme, Os Residentes se espatifa no encontro com os olhos e, como o grupo de protagonistas faz com as casas que aparecem ao longo do filme, se instala no imaginário de quem vê, para seguir se multiplicando após o fim da projeção. E isso é algo que o cinema brasileiro – mesmo em seu melhor – não proporcionava há tempos.

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