Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
O pornógrafo
Piranha, o filme dirigido por Joe Dante em 1978, era o reverso de uma absorção irônica das produções de Roger Corman pela grande indústria de Hollywood. À medida em que filmes de vocação B (feitos, inclusive, por diretores que saíram de sua própria trupe) se tornavam a nova aposta de custo-benefício dos grandes estúdios – com a vagabundagem intrínseca ao cinema de gênero sendo inflada por orçamentos à época astronômicos, como o de O Exorcista (1973), de William Friedkin – Corman dá o golpe de mestre: devolve Tubarão (1975) ao lugar que lhe era devido (e em nada menos nobre, embora sem dúvida diferente), em um remake que tira toda pompa e circunstância do filme de Spielberg, e mantém apenas o jogo de suspense, a construção de clima e a precisão de encenação e decupagem que constrói ambos.
A eloquência é cristalina: tira-se um tubarão gigantesco e que, a história sabe, funcionava mal a ponto de precisar ser “escondido” na edição, para abrir caminho a um grupo de peixinhos, patético e destruidor. Pelo cinema – ou seja, por uma mise en scéne que consegue transformar qualquer brinquedo de borracha em uma máquina assassina – o cardume de piranhas de Corman conseguia efeito muito parecido, por vezes até mais forte do que o do monstro branco e paquidérmico da Universal. A sacada ainda tinha um duplo sentido invejável: em termos de indústria, era o triunfo dos muitos “peixes pequenos” sobre a morosidade recém-oficializada dos blockbusters, em um último grito de vitalidade de um sistema de estúdios que era tão grande e desajeitado quanto o tubarão de Spielberg (e o final dessa história todos sabemos, com Brian De Palma filmando com capital estrangeiro, Friedkin cuspido de volta à margem de onde ele havia surgido, Coppola em auto-exílio intermitente, e Spielberg e Scorsese como cavaleiros oficiais da indústria); em termos históricos, era a chance de recolocar os pingos nos “i”s: não tente parasitar um parasita, pois a natureza do parasita, exercitada em anos de história, sempre triunfará sobre o desejo pontual do gigante que, por questões de contingência, se finge parasita. Corman e Dante pegam Tubarão – um belo filme à sua maneira – e, em uma cena de Piranha, escancaram a relação da indústria com o filme: ele é apenas um jogo de fliperama.
Corte seco para 2010, e um novo Piranha ocupa as salas de cinema do mundo, dessa vez dirigido por Alexandre Aja. Que as diferenças dos dois filmes sejam baliza não exatamente de fidelidade entre obras, mas sim de como cada uma delas usa uma mesma base para se colocar de forma antagônica diante do mundo. Alexandre Aja tira toda a metáfora política do Piranha original, concentrando seu filme apenas na parte final do balneário, que aqui ganha significado completamente distinto. No filme de Dante, há um governo que mente, um exército irresponsável, um cientista que se quer Deus, uma investigadora inconsequente, e um dono de hotel de empreendedorismo sem escrúpulos que – em um paralelo claro aos grandes estúdios de Hollywood e à relação que eles estabeleceram com toda a geração dos movie brats – não se incomoda em jogar seus hóspedes às bestas, desde que isso não atrapalhe os negócios. Em ação conjunta, mesmo que descoordenada, todos eles produzem a catástrofe. Em Piranha 3D, uma lata de cerveja jogada acidentalmente (por, em referência muito sintomática, Richard Dreyfuss, protagonista de Tubarão) em um lago abre uma fissura catastrófica, liberando criaturas pré-históricas que, por meio do canibalismo, se conservaram isoladas por séculos no centro da terra. A questão, portanto, não é de cunho político, mas sim naturalista: Piranha 3D é marcado pelo instinto de sobrevivência que nos leva a comer – metaforicamente ou não, para o filme não há diferença – uns aos outros.
Estamos diante, portanto, de um exploitation, um filme de lógica predadora, mas que também se quer crítico desse processo. Sim, Piranha 3D é uma obra moralista, como o são diversos filmes de terror (em geral, não os melhores), e aí é apenas questão de determinar a fonte e a intenção dessa moral. Se em 1978 as piranhas eram disseminadas por um rio – logo, um curso linear que vai do particular ao comum, de uma pequena represa privada ao oceano – agora elas surgem de dentro do próprio lago, da própria Terra, do próprio filme (como indica o redemoinho do prólogo), dos próprios seres humanos. Por cima da escória, porém, há o paraíso. O balneário de Piranha 3D é o próprio éden, pervertido pela lógica devassa do springbreak, e ameaçado pelo hedonismo ostensivo dos seios à mostra e da promessa de glamour da indústria pornográfica. Aja é estúpido, mas não é bobo, e para gritar o preto no branco é preciso diluí-los em tons de cinza: em Piranha 3D, as crianças mentem, a mocinha do interior se empolga tanto com a promessa de glamour da equipe do filme pornográfico quanto o rapaz protagonista, e a tipificação grosseira das personagens se justifica na auto-ironia que o filme adota ao longo de toda a sua duração. As tentações existem, e o fato de um ou outro personagem não ceder a elas não lhe garante sobrevivência no final das contas. O niilismo do filme – que, ao contrário do Piranha original, se corrói de dentro pra fora – vem marcado pela culpa do pecado original. Não há sobreviventes possíveis.
Há, portanto, uma oposição frontal e trágica entre superfície e profundidade, e o filme toma partido claro de uma delas: a humanidade pode parecer bela, mas a beleza não sobrevive aos instintos destruidores que estão em seu interior. A ironia, porém, é que Piranha 3D é todo um filme de superfície, do verniz prateado da fotografia glossy de publicidade (a mesma que McG usa, de forma consequente e irônica, nos seus dois As Panteras) aos efeitos especiais que permitem que tudo aquilo que Dante precisava “solucionar” de forma enviesada (e por isso mesmo interessante) volte de forma explícita, incontornável e frontal. Todo esse bom acabamento tira, do filme, qualquer possibilidade de violência. Com exceção de uma única cena – que começa com atropelamentos de barco, e termina com cabelos presos na hélice do motor, com todas as consequências que se pode esperar disso – Piranha 3D impõe um distanciamento que anula qualquer possibilidade de embate do filme com o espectador. Sua sangria é cosmética, suas explosões são seguras, seu moralismo é apenas conveniente e sua putaria acaba junto com o feriado. Seja na opção pelo humor – no caso, mais para distanciamento irônico do que para esculhambação irrestrita; mais para Planeta Terror (2007) do que para Machete (2010) – ou mesmo no uso do 3D – que dilui a proximidade perversa necessária ao cinema de horror na sensação de irrealidade que ricocheteia nos óculos 3D, fazendo com que cada corpo em cena pareça de fato um boneco em animação – o filme se fecha como espetáculo seguro, como entretenimento que não entretém, pois não acredita no jogo.
Piranha 3D é uma nova tentativa de golpe da indústria, uma nova sacudida para tentar se livrar dos parasitas. É portanto, mais um filme A que se aproxima do universo B (o contrário, novamente, de Machete, filme que perverte o que é A em um espírito de porco típico dos filmes B) para sugar o que ali sequer existe, e que, no mau entendimento, se esforça para manter apenas a aparência – mais uma vez, questão de superfície – que facilita a venda, as franquias e as máquinas de fliperama. Não à toa, se o gesto histórico do Piranha de Joe Dante estava justamente na transformação do tubarão em pequenas piranhas, é sintomático que Piranha 3D termine com um monstro gigantesco devorando um dos protagonistas: ser peixe pequeno é menos uma opção, e mais um estágio (predatório) para se tornar gigante e soberano. Piranha 3D é marcado por esse incômodo dos filmes em vestibular para blockbuster, jogando dentro de limites seguros para, quem sabe, jogar em campos maiores de uma próxima vez. E sim, há piadas engraçadas, há momentos que divertem, há espasmos de catarse na babaquice, mas tudo dentro de um gozo utilitário que se apaga com o acender das luzes, como o desejo carnal é travado pelas próteses de silicone. Um tanto como um filme pornográfico.