Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Jogo sem cena
Amor? é um documentário reencenado, no qual atores recontam histórias, coletadas para o filme, de pessoas que tiveram relações amorosas que elas consideravam violentas e destrutivas. É inevitável que tal procedimento traga à lembrança Jogo de Cena (2007), de Eduardo Coutinho, e a comparação é ponto justo para se medir as diferenças entre os filmes. Pois o que fazia de Jogo de Cena uma obra tão instigante era, entre outras coisas, a maneira como a construção se revelava pela desconstrução: se ficamos impressionados com o depoimento interpretado por Andréa Beltrão, é revelador que no momento seguinte Coutinho converse com ela e pergunte onde se deram as conexões emocionais da atriz com o texto, e em que momento a encenação declarada conseguia entrar em contato com a “verdade” do depoimento. Como sempre, o interesse de Coutinho se concentrava na potência de um encontro entre duas sensibilidades.
Em Amor?, ao contrário, não há espaço para nada disso. Temos apenas atores reencenando depoimentos que o filme diz serem verdadeiros, em certos momentos usando letreiros que atestem a veracidade da encenação: foi exatamente assim que aconteceu no depoimento original. O que o filme ganha, portanto, com a encenação? Nada, absolutamente nada. Não há motivo para se recorrer a atores quando o que está em jogo é apenas a força do que é contado, e não ajuda que a justificativa dada pelo filme faça pouco sentido (e que suas questões éticas de exposição de terceiros já tenham sido resolvidas mesmo pelo pior telejornalismo). Ao contrário, trocando depoentes por atores perde-se apenas a força do corpo em si, da conexão entre as situações contadas e o rosto que as viveu. Não há troca possível entre o ator e o texto quando o que está em jogo é a verossimilhança, e Amor? se esconde atrás de procedimentos de linguagem aparentemente sofisticados na esperança de que um filme de pretensões absolutamente rasteiras e um moralismo de falsas questões (existe amor sem violência?) se potencialize como um produto artístico de alguma relevância.
Mas o que vemos na monotonia de Amor? é exatamente o contrário: em seu afã pela aparência de sofisticação, os depoimentos no filme têm menos força do que as experiências compartilhadas no final de cada episódio das novelas de Manoel Carlos. No fim das contas, o que João Jardim se esforça é fazer de histórias violentas algo palatável para o público do GNT (canal produtor do filme) – assim como uma cena de nú de Eduardo Moscóvis ganha uma levantada de perna providencial no momento exato, naquela velha especialidade do mau cinema (tão bem aproveitada por sujeitos como Paul Verhoeven e Brian De Palma) que é o nú frontal lateral. Amor? é cheio dessas dissimulações aberrantes – de “Carinhoso” tocada ao sax a cenas em super 8 que façam toda aquela suposta dor parecer mais “poética” – que resultam em sua maior ironia: com a desculpa de preservar as pessoas, seus joguetes de linguagem e encenação são os sintomas de maior desrespeito para com as histórias de vida compartilhada por suas personagens. A maneira solene e palatável que o filme usa para tentar dourar esse desrespeito só reforça o quão falsa é a sua ingenuidade.
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