Publicado originalmente na Cinética em Novembro de 2010.
Fazes de conta
Não deixa de ser animador ver o 43o Festival de Brasília começar com uma sessão um tanto atípica para o panorama atual e histórico do cinema brasileiro. Afinal, o primeiro dia de competição foi dedicado a três filmes que abraçam o fantástico como força motriz, algo que, mesmo com as intermitentes exceções (O Fim da Picada, de Christian Saghaard, por exemplo), permanece um tanto incomum na produção cinematográfica brasileira. Com exceção maior ao trabalho de José Mojica Marins – cineasta fantástico que trabalha em gênero distante dos filmes em questão e que influencia diretamente um nicho de diretores de sensibilidades não exatamente próximas das aqui apresentadas – mesmo os melhores filmes brasileiros a mergulhar neste pântano (pensemos em Amuleto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, por exemplo) normalmente o fazem pela via do misticismo, incorporando o fantástico a estratégias de um cinema convencionado por uma idéia difusa de “realismo”. Passada essa animação a priori, a ausência de uma tradição cinematográfica fantástica em língua portuguesa é sentida fortemente aqui: Cachoeira, Fábula das Três Avós e A Alegria sofrem, de maneiras diferentes, de uma sensível falta de referências ao saltar do realismo cotidiano para o fantástico, esbarrando em dificuldades por vezes intransponíveis ao tentar estabelecer esse outro registro e encontrar o tom apropriado de encenação.
Dos três filmes exibidos, Cachoeira, de Sérgio José de Andrade é o que mais facilmente se insere nessa espécie de “realismo místico” brasileiro. Seu viés fantástico é justificado diegeticamente pela bebida alucinógena que os jovens índios tomam – uma mistura a base de cachaça que simboliza toda uma miscigenação cultural das novas gerações indígenas – enquanto ouvem rock na floresta e tomam parte de um ritual que termina em uma morte simbólica. A nova tradição – não à toa, trazida à aldeia por um jovem mestiço, de origem urbana -é contraposta à narração de um dos velhos índios da tribo, em um recurso que acentua a questão central do filme da desconexão dos mais jovens com sua tradição, em busca de uma cultura que lhes pareça própria.
Entre Os Mestres Loucos (1955), de Jean Rouch (por uma fotogenia do assombro, calcada na adaptação de uma cultura de viés imperialista aos hábitos locais), e Plataforma (2000), de Jia Zhang-ke (pela maneira ambivalente que o filme lida com o velho binômio tradição/modernidade), é surpreendente que Cachoeira emperre justamente quando dá de frente com sua própria tradição cinematográfica e precisa fazer a estória andar. A inegável força dos planos dos índios ouvindo heavy metal entre as árvores, da narração do pajé e dos planos do garoto que corre pela mata se dissipa totalmente sempre que um diálogo se faz necessário, e que os atores são exigidos para além de sua presença. Embora Cachoeira tome parte em um jogo entre o místico e o real bastante caro ao cinema brasileiro, o filme ganha força sempre que se afasta dessa tradição em busca de imagens que traduzam essa sensação de encontro com o novo que o filme trabalha e tematiza. Por outro lado, a necessidade de pontuar essa potência com uma dramaturgia mais convencional esbarra na pressa e na falta de traquejo em encenar o clássico, em colocar dois atores em contato e criar, com isso, uma relação que pareça crível.
Fábula das Três Avós sofre de problema semelhante, embora suas ambições sejam bastante distintas. Pois Daniel Turini busca inspiração sem quaisquer paralelos no cinema brasileiro: estamos próximos da infância estilizada de um Tim Burton, com a mesma predileção pela frontalidade, pelas cores sombriamente anti-naturais, pelas lentes mais abertas e por um cuidado expressivo com o decór, com as paredes de estampas geométricas, os objetos de cena precisamente colocados e valorizados pelo enquadramento em scope. Não há dúvida, portanto, que Turini conhece bem suas influências e sabe trabalhá-las com alguma habilidade. Só que o que impede a adesão a Fábula das Três Avós é justamente, de novo, a falta de tom ao inserir os atores nesse universo. A vontade de conto de fadas se dilui em atuações que não são naturalistas nem estilizadas o suficiente, e que se perdem na falta de precisão de um teatrinho para crianças. Entre o rigor visual e a imprecisão de encenação, Fábula das Três Avós é um filme que não chega a dar liga.