Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
O particular universal
Na segunda sessão da competição nacional do 43o Festival de Brasília, a programação reuniu três filmes que misturam registros dissonantes e buscam uma harmonia – quando não uma expressão de personalidade – na promoção desses encontros. Angeli 24 Horas, de Beth Formaggini é um documentário tradicional de depoimentos – no caso, todos do próprio Angeli, cartunista e protagonista do filme – pontuado com imagens em time lapse da cidade de São Paulo, e de pessoas na rua, encarando a câmera – recurso que, conjugado à fala do cartunista, traduz visualmente sua estratégia de pinçar personagens de seu cotidiano na cidade. A opção é o maior sopro de vitalidade no filme que, a rigor, é muito dependente da força das falas do próprio Angeli, e um tanto previsível em sua aderência formal (rock na trilha-sonora, ampliação das tiras do cartunista, registro de um dia de trabalho, etc). Com a sequência de interrupções da filmagem em time lapse, o filme destaca a proximidade em modalidades artísticas que por vezes parecem mais distantes; ele volta a ser percebido como uma tira de quadros em movimento, não muito diferente do movimento da própria história em quadrinhos. Porém, a repetição sistemática e pouco variável da estratégia se arrasta ao longo dos 25 minutos de projeção, perdendo dramaticamente sua força a cada nova reiteração. Angeli 24 Horas acaba apenas como um registro – em certa medida estilizado, mesmo que de maneiras um tanto banais – da fala de seu personagem, e os limites de suas virtudes não são muito mais amplos do que os de uma reportagem de televisão.
Já Contagem, de Gabriel Martins e Maurilio Martins, tem como centro dilemas propriamente cinematográficos: uma narrativa de estrutura labiríntica; um trabalho de gênero fortemente calcado em suas convenções; um gosto pelo diálogo e pelo texto que convergem na força dos atores em cena; um conjunto de referências notavelmente cinéfilo; etc. Mas há algo de especial em Contagem que fica claro já em seus primeiros planos: ao mesmo tempo em que o flerte com o gênero e o cuidado de mise en scène sugerem uma estilização na construção de climas não muito distante do Cronenberg de Marcas da Violência (2005), no momento seguinte uma das personagens sai à rua e a câmera cola em sua nuca, evocando a urgência de Rosetta (1999) ou O Filho (2002), dos irmãos Dardenne. Que a dupla de diretores consiga passar sem qualquer resistência entre referências tão díspares quanto Cronenberg e os Dardenne só faz reforçar o quanto de liberdade o filme se permite, e o quanto de inteligência fundamenta suas opções. Se ontem mesmo escrevi sobre a tentativa de “conciliar o inconciliável” em A Alegria, Contagem vai um tanto mais adiante: revelar conciliável o que antes nos parecia inconciliável.
Pois Contagem não vive do choque dos registros, mas sim de sua orquestração. Ao mesmo tempo em que temos um filme de algum nível de estilização e controle, temos atores que vibram livremente em cena, em interações cheias de vida que dobram o jogo estrutural do filme, produzindo uma ambiguidade entre as forças em tela e as que decidem os limites dessa tela – os corpos em cena e o olhar dos diretores. Esse interesse que não exclui a câmera nem o que está diante dela leva àquela que é talvez a maior virtude de Contagem: é, ao lado de Fantasmas (filme de André Novais Oliveira protagonizado pelos próprios diretores de Contagem, sócios de André na produtora Filmes de Plástico), um dos raros filmes no panorama atual a perceber o quão envolvente pode ser um sotaque, uma maneira particular de falar, uma gíria ou expressão que apreendemos sem reconhecer. Contagem incorpora essa sujeira local a uma estrutura de thriller universal, tal como Scorsese e os hábitos de sua Little Italy. E melhor: o faz não por um bom mocismo antropológico do “registro” dessas falas, mas sim por perceber o quanto ela pode trazer de novo, vivo e vibrante ao “mais do mesmo” – tarefa constante e primordial dos cineastas de gênero.
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