Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2010.
Velhas novidades
Não é difícil se entusiasmar, logo de saída, com o Woody Allen que transparece nos primeiros minutos de Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos. Depois de dois filmes seguidos (Vicky Cristina Barcelona e Tudo Pode Dar Certo) que estampavam um vigor de encenação que há muito parecia perdido, há um notável empenho inicial do diretor em oxigenar sua direção neste novo trabalho. Allen, sujeito muito mais reputado pela verve textual do que pela firmeza com que pilota a câmera, chega a Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos com ambições de cinema: as personagens se entrelaçam em uma espiral de tempo que mistura a rememoração ao presente, e gera uma euforia desorientada que faz lembrar o Robert Altman de O Casamento. Por mais que existam reservas possíves ao cinema de Altman, aqui a filiação traz um esforço fundamental de invenção um tanto inédito na carreira de Allen. Pois mesmo seus filmes anteriores que trabalhavam a narrativa em multiplot, como Hannah e suas Irmãs, tinham uma diferença em relação a este novo trabalho: lá, era o vai e vem das personagens que determinava a estrutura e pedia os cortes; aqui, é exatamente o contrário. A estrutura força encontros e desencontros, jogando as personagens em um vórtice aleatório de acontecimentos e acasos. Se a frase anterior traz à cabeça o cinema dos irmãos Coen, não é por acaso: temos, aqui, uma tentativa autêntica de se tecer uma trama de vento, com a possibilidade de se deixar finais em aberto, relações não consumadas e desejos suspensos pela corda presa ao pescoço.
Há, porém, que se demarcar certas diferenças. Pois, se a predileção pelas comédias românticas de Woody Allen consegue tirá-lo do fatalismo supostamente pós-moderno de Joel e Ethan Coen, é inevitável que a adoção de uma mesma lógica e estrutura acabe gerando distorções um tanto aberrantes. Se existem comédias românticas que adotaram forma parecida e atingiram resultados bem melhores (Simplesmente Amor, de Richard Curtis, vem à cabeça), é justamente por elas sabotarem essa suposta sofisticação formal com as necessidades de um gênero que depende intimamente da banalidade para ter força.
Nada poderia ser mais irônico (e, a rigor, mais apropriado) do que se fazer uma comédia romântica banal e absolutamente previsível usando os joguetes de cena dos Coen, de um Paul Thomas Anderson ou, indo mais atrás, de um Kieslowski. É a redução da auto-importância à essencialidade da desimportância absoluta. Mas Woody Allen, ao contrário, não acredita na pós-modernidade o suficiente para abraçar o banal, seja ele qual for. A vontade de ser Dostoiévski (e de usar como guião uma citação de Shakespeare – muito expressivamente, uma das mais batidas) fala sempre mais alto. Na falta de talento para tal, ou de ironia para ser um Chabrol, resta-lhe se conformar em passar por vidente, hipnólogo ou simplesmente charlatão – o que confirma para O Escorpião de Jade (2001) um dos mais altos e justos lugares na obra recente de Allen.
Aos poucos, a excitação do furacão inicial de Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos se dissipa, e deixa que o filme se contamine do mesmo sentimento que rege toda a sua fase inglesa: o cinismo. Quando Roy (Josh Brolin – ator que ganha destaque no mercado justamente com um filme dos Coen, Onde os Fracos Não Têm Vez) finalmente muda de vida e consegue trocar sua esposa pela vizinha que ele via todo dia pela janela, temos o plano mais bonito do filme: ele olha para a janela do apartamento onde morava e vê sua ex-esposa trocando de roupas. A percepção do acaso, de que estar aqui é tão plausível e aleatório quanto estar lá, é tardia e nada produz de fato. As mudanças são irreversíveis, e as escolhas, sempre fatais. Que Allen organize todo seu filme em torno desta lógica e, ao final, deixe seus personagens presos ao futuro incerto que balança ao vento, é apenas a evidência final de o quanto Você Vai Conhecer o Homem dos Seus Sonhos definha diante de sua própria desorientação.