Publicado originalmente na Cinética em Outubro de 2010.
Espaço afetivo
Em um ano em que os principais prêmios em Cannes foram para diretores já tidos em alta conta por aqui (Apichatpong Weerasethakul na competição principal; Hong Sang-soo – este ano, fora do Festival do Rio – na Un Certain Regard), e que filmes menos conhecidos, que também foram premiados, não renderam mais do que bocejos de nossa parte (Os Lábios, Ano Bissexto), é seguro afirmar que Adrienn Pál – que levou o prêmio da FIPRESCI – é a maior revelação vinda de Cannes para o Festival do Rio. Não exatamente um filme de derrubar paredes, o segundo longa de Agnés Kocsis mostra que a diretora não só viu as coisas certas, e entendeu como elas funcionam, mas também tem um olhar bastante particular (mesmo que ainda embrionário) que orquestra suas referências.
Grosso modo, seria possível jogar Adrienn Pál na mesma sacola de O Errante ou A Mulher sem Piano (2009) – filmes que repisam uma série de referências com certo entendimento, mas brilho insuficiente ou esporádico. Mas pouco a pouco percebemos o quanto as convenções de um certo cinema contemporâneo são curvadas aqui a um olhar bastante particular, que nunca teme fugir dessas mesmas convenções, se lhe parecer necessário. Em primeiríssimo lugar, há uma ausência. Piroska (Éva Gábor) é enfermeira em uma ala de um hospital reservada para doentes terminais. Ela passa seu dia observando dezenas de monitores cardíacos, e corre para socorrer um paciente sempre que os batimentos começam a rarear. Quando mais uma velhinha chega ao hospital, Piroska se espanta com o nome na etiqueta: Adrienn Pál, o mesmo nome de sua melhor amiga de infância. Surge daí a fagulha necessária de passado (a infância – idílio que guarda toda a potência de vida do filme) para conferir algum sentido ao presente: Piroska tentará reencontrar sua amiga, embora em dado momento ela mesmo admita não saber o porquê desta busca ter se tornado tão importante para ela. A ausência leva à gratuidade. Importa menos o sentido, e mais a fidelidade à pulsão inexplicável que, mesmo frágil a qualquer racionalização, leva o sujeito de um lugar para o outro, de uma conversa à outra. Viver não é mais que a errância em nome de uma causa inventada.
Mas há vida, de fato! Pois uma das curiosidades maiores em Adrienn Pál é a maneira como Kocsis construirá uma Hungria que é um verdadeiro cemitério a céu aberto, mas que permite pequenos arroubos de vida e espontaneidade – um deles, envolvendo um par de headphones de fio curto e um asilo de velhinhos, gera uma das piadas mais memoráveis do filme, com o uso exemplar de primeiro e segundo plano que os melhores diretores de comédia entenderam como ninguém. Mesmo os vivos parecem mortos: os quadrados empilhados dos monitores cardíacos formam a mesma composição gráfica das gavetas do necrotério, dos túmulos verticais no cemitério e das janelas acessas dos prédios da cidade. Cidade que, a propósito, será melhor condensada na menina dos olhos do marido (que, em uma relação tão burocrática e fria, poderia bem ser apenas irmão) de Piroska: uma fabulosa maquete que ocupa todo um cômodo da casa. Em um dos grandes momentos do filme, a câmera faz um longo travelling sobre a maquete, e termina no rosto de Piroska. O amor que um dia fora dela está depositado ali, na inutilidade luminosa daquela falsa cidade – e, por isso mesmo, a evidência primeira de que o marido de Piroska havia ido embora é justamente o sumiço da maquete. Em Adrienn Pál, ocupar espaços é questão de amor.
Adrienn Pál obrigará Piroska a ocupar a cidade novamente, e a câmera de Agnés Kocsis não fará diferente. A necessidade constante da frontalidade não impedirá que a câmera se ponha em movimento quando necessário, em longos travellings que esquadrinham o espaço de maneira não raro impressionante. A procura detetivesca por Adrienn Pál – o correspondente vivo e enigmático daquela imagem que definha em uma cama -é também o impulso do interior para o exterior, o combustível necessário para tirar a protagonista da inércia assombrada de seu necrotério particular e devolvê-la à cidade, ao convívio com mortos de outra natureza. Mesmo que sua pesquisa à leve, ao fim, de volta para o hospital: por mais que a resposta esteja ali dentro, em um cômodo de porta entreaberta ao seu lado, é preciso dar a volta, buscar algo invisível, sair de sua própria inércia. Adrienn Pál é, no fim das contas, sinônimo do próprio filme: apenas um motivo para se ir de um lugar a outro, e depois retornar. Agnés Kocsis tem a consciência aguçada, dos bons ficcionistas, de que a trajetória pode ser apenas a desculpa para se entreter em um trabalho de modulação das permanências (pensemos, aqui, nos diversos filmes de casamento de Ozu). Pois a cidade é diferente para cada pessoa, assim como a memória coletiva nunca fecha as contas das dissonâncias das memórias pessoais – o único sujeito que se lembra de Adrienn Pál como ela era, com seu mesmo nome, é o que foi apaixonado por ela. A única memória confiável é a afetiva; e o afeto é menos o objetivo da busca, e mais a soma de cada pequena experiência – como a vida é somente uma sucessão de dias. De todos aqueles encontros afantasmados, temos uma idéia possível de Adrienn Pál, como, de cada passo dado na busca, vemos nascer uma personagem. Na sequência final, Piroska retoma a rotina e olha para as telas dos mesmos monitores cardíacos, em uma sinfonia de beeps que vai, aos poucos, sendo harmonizada, até soar como um único batimento. Da sequência de aleatoriedades da vida daquelas várias personagens, temos, ao fim, Adrienn Pál.