Publicado originalmente na Cinética em Setembro de 2010.
Choques de época
Antes mesmo de começar a projeção, não é difícil intuir com que tipo de problemas Luz nas Trevas (e quem o assiste) terá de lidar. Continuação de um dos clássicos maiores do cinema brasileiro – O Bandido da Luz Vermelha (1968), de Rogério Sganzerla – o filme nasce do próprio desafio de levar adiante e, ao mesmo tempo, atualizar a inquietação aguda do filme original, mais de quarenta anos depois. Qualquer crítica que parta, portanto, da emulação de estilo e da referencialidade ao Bandido original estaria a questionar a motivação do próprio filme. Embora isto nada tenha de ilegítimo, mais interessante é ver o que Luz nas Trevas evidencia em seus momentos mais fortes e em suas evidentes fragilidades, a despeito de uma emulação e referencialidade que lhe são essenciais.
Em primeiro lugar, há de se admitir uma mudança de estatuto de O Bandido da Luz Vermelha e suas proposições estéticas, políticas e culturais ao longo dos anos. Pois o que Luz nas Trevas torna cristalino é justamente o quanto o filme de Sganzerla – a princípio, um filme da contracultura, do esculacho – foi assimilado pelo imaginário audiovisual brasileiro. Pois quando vemos esse universo emulado, com integridade e capricho, no filme de Helena Ignez e Ícaro Martins, percebemos o quanto há do espírito de Sganzerla na televisão e na cultura popular atual, seja no visual de um programa como Hermes & Renato, nos momentos de irreverência sem freios de um Pânico na TV, ou mesmo – como bem observou Daniel Caetano em um debate na Mostra de Tiradentes – nas personagens espontâneas de um filme como Pacific (2010), de Marcelo Pedroso (não exatamente um filme popular, mas definitivamente um filme de populares). Por mais que essas derivações tenham problemas particulares, elas evidenciam o quanto a lógica operativa do deboche e da esculhambação do filme seminal de Sganzerla se tornou corriqueira na cultura brasileira. A contracultura deixou de ser contra, e o esculacho – com todos os seus choques – se tornou um comportamento comum, cujas manifestações de repulsa mais gritantes (lembremos das “Sandálias da Humildade”, quadro de linchamento via constrangimento do Pânico na TV) são publicamente achincalhados.
Por conta disso, a despeito de a referencialidade fazer sentido como projeto, é inevitável que um tanto dessa emulação nos chegue, hoje, com a polaridade invertida. Muito como Mojica em Encarnação do Demônio, Helena Ignez e Ícaro Martins têm em mãos contenda semelhante à das adaptações literárias para o cinema: como transpor determinado universo a novas restrições históricas e conjunturais de maneira que seu espírito seja conservado? O maior desafio de Luz nas Trevas é justamente perceber o quanto de diluição seu plano de choque sofreu com o tempo (pensemos, novamente, na diferença do Zé do Caixão de 1964 para o de 2008), para então buscar maneira de reavivá-los. O mais surpreendente, porém, não é que na maior parte do filme isso esteja longe do alcance, mas sim que esses momentos de fulgor existem. Seja pelos acertos de casting (de Thunderbird como repórter chanchadesco de TV à afetação nada dissimulada de Ney Matogrosso como a nova encarnação do Bandido – escancarada na bela cena final), ou por decisões muito acertadas de mise en scène (enquadramento, tempo de cena, precisão no corte), Luz nas Trevas tem arroubos constantes, mesmo que breves, de força e instabilidade – palavras essenciais para o cinema de Sganzerla.
Ainda assim, apesar de esses choques pontuais conservarem a atenção à imprevisibilidade do filme de Helena Ignez e Ícaro Martins, é inevitável que uma dificuldade estrutural maior tire um tanto considerável da força do filme. Pois O Bandido da Luz Vermelha era, pra todos os efeitos, um retalhão de paródias que iam do noticiário policial ao filme de gênero, passando pela chanchada, as histórias em quadrinho e a cultura pop. E o fato de todos esses retalhos reaparecerem ipsis litteris em Luz nas Trevas – com um estranho sabor vintage – leva o filme a uma esquina um tanto ingrata: fazer a paródia da paródia. Essa inversão tira da maior parte de Luz nas Trevas um dos traços mais marcantes do Bandido: a impressão de que o material sensível não resiste à força do filme, e que vemos, na verdade, uma montagem precária de restos de negativos, como no Othello (1952) de Orson Welles ou no Pialat de Loulou (1980) e A Nossos Amores (1983). Pois se a conjuntura mudou – se não há mais Cinema Novo, projeto político ou ordem estabelecida a se avacalhar – o olhar fragmentador de Sganzerla está hoje distorcido nos videoclipes, na publicidade, nas novelas. E por mais que essa decantação, que vai das margens para o centro, marque uma vitória improvável do bandido (o que faz de O Bandido da Luz Vermelha um filme estranhamente profético), os mesmos planos curtos, a mesma montagem de choque, a mesma vertiginosa abrupção parecem hoje extremamente confortáveis, seguras e incapazes de produzir fagulhas mais significativas de uma curiosidade constante, mas um encanto intermitente.